tag:blogger.com,1999:blog-21092839525808556742024-03-18T18:50:07.151-03:00Animula Vagula Blandula[Pequena alma terna flutuante]
:
Dedicados a eventuais navegantes à deriva, alguns textos que mais admiro: "Pulchrum est paucorum hominum" [O belo é para poucos homens. Horácio, 65-8 a.C.]Sérgio Freitas Milan de Almeidahttp://www.blogger.com/profile/18218908588520138151noreply@blogger.comBlogger137125tag:blogger.com,1999:blog-2109283952580855674.post-44981227915820393412022-11-13T09:40:00.006-03:002023-05-17T22:11:11.064-03:00A face da glória - mito hindu, por Joseph Campbell<p><span style="font-size: 16px;"> </span><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/a/AVvXsEiMFjFv2H-Hp0bMmjtHj-EnDSw5nby86-iq3EESrf4JGxybNdUvbpfjLDRW2EuVDjzyuLx5AYbWA-ZFB9ZLEi5ME-Ka2jzwv3Y_k3fDh3sH22q_WZ_3f3htngmRDDTDeFs1TypGOuIab8JGH8ReIegiEXlrTaxaiyEyL7U8CywbkCUVljec0d_HCwME" style="font-family: arial; font-size: small; margin-left: 1em; margin-right: 1em; text-align: center;"><img alt="" data-original-height="231" data-original-width="218" height="288" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/a/AVvXsEiMFjFv2H-Hp0bMmjtHj-EnDSw5nby86-iq3EESrf4JGxybNdUvbpfjLDRW2EuVDjzyuLx5AYbWA-ZFB9ZLEi5ME-Ka2jzwv3Y_k3fDh3sH22q_WZ_3f3htngmRDDTDeFs1TypGOuIab8JGH8ReIegiEXlrTaxaiyEyL7U8CywbkCUVljec0d_HCwME=w272-h288" width="272" /></a></p><p><span style="font-size: 16px;">CAMPBELL:</span><span style="font-size: 16px;"> </span><span style="font-size: 12pt;">Só a morte está isenta de dificuldade. As pessoas me
perguntam: “Você é otimista em relação ao mundo?” E eu digo: “Sim, o mundo é
grande exatamente como é. E você não vai consertá-lo. Ninguém jamais conseguiu
melhorá-lo. Ele nunca será melhor do que é. É isso mesmo, portanto, aceite-o ou
deixe-o. Você não vai corrigi-lo nem aperfeiçoá-lo”.</span></p>
<p class="MsoNormal"><span face=""Arial",sans-serif" style="font-size: 12pt; line-height: 107%;">MOYERS: Isso não conduz a uma atitude francamente passiva
diante do mal? <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal"><span face=""Arial",sans-serif" style="font-size: 12pt; line-height: 107%;">CAMPBELL: Você mesmo é um participante do mal, caso
contrário não estaria vivo. O que quer que você faça é mau para alguém. Essa é
uma das ironias de toda a criação. <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal"><span face=""Arial",sans-serif" style="font-size: 12pt; line-height: 107%;">MOYERS: E o que se passa na mitologia com essa ideia de bem
e mal, da vida como conflito entre as forças das trevas e as forças da luz?<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal"><span face=""Arial",sans-serif" style="font-size: 12pt; line-height: 107%;">CAMPBELL: Essa é uma ideia zoroástrica, como tal introduzida
no judaísmo e no cristianismo. Em outras tradições, o bem e o mal são relativos
à posição em que você se coloca. O que é bom para um é mau para outro. E você
desempenha o seu papel, sem cogitar de abandonar o mundo quando percebe quão
horrível ele é, e vê que esse horror é apenas o pano de fundo de algo
maravilhoso: um <i>mysterium tremendum et fascinans</i>. <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;"><span face=""Arial",sans-serif" style="font-size: 12pt; line-height: 107%;">“Toda vida é dolorosa” é o
primeiro ensinamento budista, e assim é. Não haveria vida sem a implicação da
temporalidade, que significa dor – perda, perda, perda. É preciso dizer sim à
vida e encará-la como magnificente, do jeito que é; pois foi certamente assim
que Deus a concebeu.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal"><span face=""Arial",sans-serif" style="font-size: 12pt; line-height: 107%;">MOYERS: Você realmente acredita nisso?<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal"><span face=""Arial",sans-serif" style="font-size: 12pt; line-height: 107%;">CAMPBELL: Ela é cheia de alegria, tal como é. Não acredito que
alguém a tenha concebido assim, mas é assim que ela é. James Joyce tem uma frase
inesquecível: “A história é um pesadelo de que estou tentando despertar”. E a
maneira de despertar é não ter medo e reconhecer que tudo isso, tal qual é, é a
manifestação do horrendo poder contido em toda criação. A finitude das coisas é
sempre dolorosa. Mas a dor, em suma, é parte integrante da existência do mundo.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal"><span face=""Arial",sans-serif" style="font-size: 12pt; line-height: 107%;">MOYERS: Mas, ao aceitar isso como conclusão derradeira, você
abdica de construir qualquer lei ou de empreender qualquer luta ou...<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal"><span face=""Arial",sans-serif" style="font-size: 12pt; line-height: 107%;">CAMPBELL: Eu não disse isso.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal"><span face=""Arial",sans-serif" style="font-size: 12pt; line-height: 107%;">MOYERS: Não é a conclusão lógica que se extrai de aceitar
tudo tal como é? <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal"><span face=""Arial",sans-serif" style="font-size: 12pt; line-height: 107%;">CAMPBELL: Essa não é a conclusão <i>necessária</i> a se extrair.
Você poderia dizer: “Vou participar desta vida, vou me alistar no exército, vou
à guerra”, e assim por diante. <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal"><span face=""Arial",sans-serif" style="font-size: 12pt; line-height: 107%;">MOYERS: “Vou fazer o melhor que posso.”<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal"><span face=""Arial",sans-serif" style="font-size: 12pt; line-height: 107%;">CAMPBELL: “Vou tomar parte no jogo. É um espetáculo maravilhoso,
maravilhoso – se bem que dói um pouco.”<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;"><span face=""Arial",sans-serif" style="font-size: 12pt; line-height: 107%;">Afirmar sem reservas é difícil.
Nós sempre afirmamos em termos condicionais. Eu afirmo o mundo sob a condição de
que ele seja do jeito que Papai Noel disse que devia ser. Mas afirmá-lo do modo
como ele é... isso é que é difícil, e é disso que tratam os rituais. Ritual é participação
de grupo no mais hediondo dos atos, que é o ato da vida – especificamente, matar
e comer outro ente vivo. Fazemos isso juntos, e assim é a vida. O herói é
aquele que participa corajosa e decentemente da vida, no rumo da natureza e não
em função do rancor, da frustração e da vingança pessoais.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;"><span face=""Arial",sans-serif" style="font-size: 12pt; line-height: 107%;">O âmbito de ação do herói não é
o transcendente, mas o aqui e agora, na esfera do tempo, o âmbito do bem e do
mal, dos pares de opostos. Sempre que alguém se afasta do transcendente, cai na
esfera dos opostos. Comeu-se da árvore do conhecimento do bem e do mal, e também
do masculino e feminino, do certo e errado, disso e daquilo, da luz e da treva.
Tudo na esfera do tempo é dual: passado e futuro, morto e vivo, ser e não ser. Mas
o par supremo, que somos capazes de imaginar, é macho e fêmea, sendo o macho
agressivo e a fêmea, receptiva; sendo o macho o guerreiro e a fêmea, o
sonhador. Temos aí o reino do amor e o reino da guerra, Eros e Tanatos, como
diz Freud. <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;"><span face=""Arial",sans-serif" style="font-size: 12pt; line-height: 107%;">Heráclito disse que para Deus todas
as coisas são boas, certas e justas, mas para o homem algumas são certas,
outras não. Uma vez sendo homem, você está na esfera do tempo e das decisões. Um
dos problemas da vida consiste em enfrentá-la com a consciência de ambos os termos,
ou seja: “Conheço o centro, e sei que bem e mal são apenas aberrações temporais
e que, aos olhos de Deus, não há diferenças”.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal"><span face=""Arial",sans-serif" style="font-size: 12pt; line-height: 107%;">MOYERS: É a ideia que está nos Upanixades: “Nem macho, nem fêmea,
tampouco neutro. Qualquer que seja o corpo que assuma, através desse corpo será
servido”.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal"><span face=""Arial",sans-serif" style="font-size: 12pt; line-height: 107%;">CAMPBELL: Correto. Jesus diz: “Não julgue, para não ser
julgado”. O que significa dizer: Situe-se de volta na posição do Paraíso, antes
de pensar em termos de bem e mal. Não é exatamente o que se ouve nos púlpitos. Mas
um dos grandes desafios da vida é dizer “sim” àquela pessoa, àquele ato ou àquela
condição que você considera a mais abominável. <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal"><span face=""Arial",sans-serif" style="font-size: 12pt; line-height: 107%;">MOYERS: A mais abominável?<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal"><span face=""Arial",sans-serif" style="font-size: 12pt; line-height: 107%;">CAMPBELL: Há dois aspectos em coisas dessa ordem. Um é o
seu julgamento na esfera da ação, outro é o seu julgamento como observador metafísico.
Você não pode dizer que não deveria haver serpentes venenosas, porque essa é a
lei da vida. Mas na esfera da ação, ao ver uma serpente venenosa prestes a picar
alguém, você a mata. Isso não é dizer “não” à serpente, mas dizer “não” à
situação. Há uma passagem maravilhosa no <i>Rig Veda</i> que diz: “Na árvore” –
é a árvore da vida, a árvore da sua própria vida “há dois pássaros, amigos
ligeiros. Um come o fruto da árvore; o outro, sem comer, observa”. Pois bem,
aquele que come o fruto da árvore está matando um fruto. A vida vive da vida,
isso é tudo. <o:p></o:p></span></p><p class="MsoNormal"><span face=""Arial",sans-serif" style="font-size: 12pt; line-height: 107%;"><b><span style="font-style: italic;"> </span><span><i> </i> </span><span> [A face da glória]</span><br /></b></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;"><span face=""Arial",sans-serif" style="font-size: 12pt; line-height: 107%;">Um breve mito hindu conta a
história do grande deus Shiva, o Senhor cuja dança é o universo. Ele tinha como
sua consorte a deusa Parvati, filha do rei da montanha. Um monstro veio até ele e
disse: “Quero sua mulher como minha amante”. Shiva ficou indignado, e
simplesmente abriu seu terceiro olho e, desfechando raios, golpeou a terra; houve
fumaça e fogo, e quando a fumaça clareou havia outro monstro, faminto, com os cabelos
como os cabelos de um leão, voando nas quatro direções. O primeiro monstro viu
que o monstro faminto estava prestes a devorá-lo. Pois bem, o que você faz
quando se encontra numa situação como essa? A cautela convencional aconselha colocar-se
à mercê da divindade. Então o monstro disse: “Shiva, eu me rendo à sua mercê”. Bem,
existem regras para este jogo divino. Quando alguém se rende à sua mercê, então
você deve mostrar-se misericordioso.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;"><span face=""Arial",sans-serif" style="font-size: 12pt; line-height: 107%;">Então Shiva disse: “Eu lhe
ofereço minha misericórdia. Monstro faminto, não o devore”. <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;"><span face=""Arial",sans-serif" style="font-size: 12pt; line-height: 107%;">“Bem”, disse o monstro
faminto, “que devo fazer? Estou com fome. Você me fez faminto, para devorar a
este monstro aqui.”<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;"><span face=""Arial",sans-serif" style="font-size: 12pt; line-height: 107%;">“Bem”, disse Shiva, “devore-se
a si mesmo”.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;"><span face=""Arial",sans-serif" style="font-size: 12pt; line-height: 107%;">Então o monstro faminto
começou pelos próprios pés e continuou a mastigar, a mastigar – e essa é uma
imagem da vida que vive da vida. Por fim, nada restou do monstro senão sua face.
Shiva olhou para essa face e disse: “Nunca vi uma demonstração mais eloquente
do que essa sobre o que é a vida. Vou chamar você de Kirtimukha – a face da glória”.
Você verá essa máscara, essa face da glória, nos portais dos templos de Shiva e
dos templos budistas. Shiva disse à face: “Aquele que não se prostrar diante de
você não será digno de vir até mim”.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;"><span face=""Arial",sans-serif" style="font-size: 12pt; line-height: 107%;">Você deve dizer “sim” ao
milagre da vida, tal como é, e não sob a condição de que ele siga as suas
regras. Caso contrário, você nunca chegará à dimensão metafisica. <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;"><span face=""Arial",sans-serif" style="font-size: 12pt; line-height: 107%;">Certa vez, na Índia, pensei
que gostaria de conhecer um grande guru ou mestre, face a face. Assim,
dirigi-me a um celebrado mestre chamado Sri Krishna Menon, e a primeira coisa
que ele me disse foi: “Você tem alguma pergunta?”<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;"><span face=""Arial",sans-serif" style="font-size: 12pt; line-height: 107%;">O mestre, nessa tradição,
sempre responde a perguntas. Ele jamais lhe diz qualquer coisa que você não
esteja apto a ouvir. Então eu disse: “Sim, eu tenho uma pergunta. Já que no pensamento
hindu tudo no universo é manifestação da própria divindade, como poderei dizer
não a qualquer coisa no mundo? Como poderei dizer ‘não’ à brutalidade, à estupidez,
à vulgaridade, à incúria?”<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;"><span face=""Arial",sans-serif" style="font-size: 12pt; line-height: 107%;">E ele respondeu: “Por você e por
mim, o certo é dizer sim”.<span style="mso-spacerun: yes;"> </span><o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;"><span face=""Arial",sans-serif" style="font-size: 12pt; line-height: 107%;">Então mantivemos uma maravilhosa
conversação sobre o tema da afirmação de todas as coisas. Isso confirmou a sensação
que eu havia tido: quem somos para julgar? Creio que esse é, também, um dos grandes
ensinamentos de Jesus. <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal"><span face=""Arial",sans-serif" style="font-size: 12pt; line-height: 107%;">MOYERS: Na doutrina clássica cristã, o mundo material é
para ser desprezado, e a vida é para ser redimida no além-mundo, no Paraíso,
onde receberemos nossas recompensas. Mas você diz que, ao afirmar o que deploro,
estou afirmando verdadeiramente este mundo, que representa a nossa eternidade,
no momento.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal"><span face=""Arial",sans-serif" style="font-size: 12pt; line-height: 107%;">CAMPBELL: Sim, é o que estou dizendo. A eternidade não é um
tempo vindouro. Não é sequer um tempo de longa duração. Eternidade não tem nada
a ver com tempo. Eternidade é aquela dimensão do aqui e agora que todo pensar
em termos temporais elimina. Se você não a atingir aqui, não vai atingi-Ia em
parte alguma. O problema com o Paraíso é que você vai ter uma vida tão boa, lá,
que sequer vai pensar em eternidade. Você vai simplesmente experimentar o
interminável deleite, na visão beatífica de Deus. Mas experimentar a eternidade
aqui mesmo e agora, em todas as coisas, não importa se encaradas como boas ou
más, esta é a função da vida.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal"><span face=""Arial",sans-serif" style="font-size: 12pt; line-height: 107%;">MOYERS: Assim é.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal"><span face=""Arial",sans-serif" style="font-size: 12pt; line-height: 107%;">CAMPBELL: Assim é.<o:p></o:p></span></p><p class="MsoNormal"><span style="font-family: arial; font-size: x-small;"><span style="line-height: 107%;">Extraído de </span>CAMPBELL, Joseph. <b>O poder do mito</b>, pág. 68-71, 34ª edição, Palas Athena Editora, São Paulo, 2021.</span></p><p></p>Sérgio Freitas Milan de Almeidahttp://www.blogger.com/profile/18218908588520138151noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-2109283952580855674.post-7929154409847839112022-10-28T11:14:00.001-03:002022-10-29T09:49:21.793-03:00Delírios - Manoel de Barros<span style="font-size: medium;">Eu estava encostado na manhã como se um pássaro à toa estivesse encostado na manhã. Me veio uma aparição: <u>Vi a tarde correndo atrás de um cachorro</u>. Eu teria 14 anos. Essa aparição deve ter vindo de minhas origens. Porque nem me lembro de ter visto nenhum cachorro a correr de uma tarde. Mas tomei nota desse delírio. Esses delírios irracionais da imaginação fazem mais bela a nossa linguagem. Tomei nota desse delírio em meu caderno de frases. Àquele tempo eu já guardava delírios. Tive outra visão naquele mês. Mas preciso antes contar as circunstâncias. Eu exercia um pedaço da minha infância encostado à parede da cozinha no quintal de casa. Lá eu brincava de cangar sapos. Havia muitos sapos atrás da cozinha. A gente bem se entendia. Eu reparava que os sapos têm o couro das costas bem parecido com o chão. Além de que eram do chão e encardidos. Um dia eu falei pra mãe: <u>Sapo é um pedaço de chão que pula</u>. A Mãe disse que eu estava meio variado. Que sapo não é um pedaço de chão. Só se fosse no meu delírio. Isso até eu sabia, mas me representava que sapo é um pedaço de chão que pula. Hoje estou maiorzinho e penso no Profeta Jeremias. Ele tanto lamentava de ver a sua Sião destruída e arrasada pelo fogo que em casa lhe veio esta visão: <u>Até as pedras da rua choravam</u>. Ao escrever a um amigo, mais tarde, na paz de sua casa, se lembrou do delírio: até as pedras da rua choravam. Era tão bela a frase porque irracional. Ele disse.
</span><blockquote></blockquote><span style="font-size: medium;">
Manoel de Barros, <i>in</i> <b>Memórias Inventadas - A Terceira Infância</b>. Ed. Planeta do Brasil, São Paulo, 2008.
</span>Sérgio Freitas Milan de Almeidahttp://www.blogger.com/profile/18218908588520138151noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-2109283952580855674.post-14382654417381087862021-04-29T09:13:00.002-03:002023-05-17T18:28:55.774-03:00 Viagem passageira - Gilberto Gil<div style="text-align: left;">O sonho é ter tudo resolvido<br />Com o passar do tempo pela vida<br />A casca da ferida se formando<br />A cicatriz na pele do futuro</div><div style="text-align: left;"><br />A pele do futuro finalmente<br />Imune ao corte, à lâmina do tempo<br />O tempo finalmente estilhaçado<br />E a poeira sumindo no horizonte</div><div style="text-align: left;"><br />O sonho é ter tudo dissolvido<br />O corpo, a mente, a fonte da lembrança<br />Enfim, ponto final na esperança<br />Somente as ondas soltas no oceano</div><div style="text-align: left;"><br />Não mais o esperma e o óvulo da morte<br />Não mais a incerteza do binário<br />Um tempo liso sem o fuso horário<br />Não mais um sim, um não, um sul, um norte</div><div style="text-align: left;"><br />O sonho dessa canção passageira<br />Mochila da viagem passageira<br />Passagem nessa vida passageira<br />Para uma vida ainda passageira.</div><p> (Canção composta por Gilberto Gil para o álbum <i>A pele do futuro</i>, de Gal Costa, de 2018)</p>
https://www.youtube.com/watch?v=IEYb2turgRo
Sérgio Freitas Milan de Almeidahttp://www.blogger.com/profile/18218908588520138151noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-2109283952580855674.post-18050798967739405272021-04-10T09:29:00.000-03:002021-04-10T09:29:33.830-03:00O filho pródigo<p> Um homem tinha dois filhos. O mais jovem disse ao pai: "Pai, dá-me a parte da herança que me cabe". E o pai dividiu os bens entre eles. Poucos dias depois, ajuntando todos os seus haveres, o filho mais jovem partiu para uma região longínqua e ali dissipou sua herança numa vida devassa. </p><p> E gastou tudo. Sobreveio àquela região uma grande fome e ele começou a passar privações. Foi, então, empregar-se com um dos homens daquela região, que o mandou para seus campos cuidar dos porcos. Ele queria matar a fome com as bolotas que os porcos comiam, mas ninguém lhas dava. E caindo em si, disse: "Quantos empregados de meu pai têm pão com fartura, e eu aqui, morrendo de fome! Vou-me embora, procurar o meu pai e dizer-lhe: Pai, pequei contra o Céu e contra ti; já não sou digno de ser chamado teu filho. Trata-me como um dos teus empregados". Partiu, então, e foi ao encontro de seu pai. </p><p> Ele estava ainda ao longe, quando seu pai viu-o, encheu-se de compaixão, correu e lançou-se-lhe ao pescoço, cobrindo-o de beijos. O filho, então, disse-lhe: "Pai, pequei contra o Céu e contra ti; já não sou digno de ser chamado teu filho". Mas o pai disse aos seus servos: "Ide depressa, trazei a melhor túnica e revesti-o com ela, ponde-lhe um anel no dedo e sandálias nos pés. Trazei o novilho cevado e matai-o; comamos e festejemos, pois este meu filho estava morto e tornou a viver; estava perdido e foi reencontrado!" E começaram a festejar. </p><p> Seu filho mais velho estava no campo. Quando voltava, já perto de casa ouviu músicas e danças. Chamando um servo, perguntou-lhe o que estava acontecendo. Este lhe disse: "É teu irmão que voltou e teu pai matou o novilho cevado, porque o recuperou com saúde". Então ele ficou com muita raiva e não queria entrar. Seu pai saiu para suplicar-lhe. Ele, porém, respondeu a seu pai: "Há tantos anos que eu te sirvo, e jamais transgredi um só dos teus mandamentos, e nunca me deste um cabrito para festejar com meus amigos. Contudo, veio esse teu filho, que devorou teus bens com prostitutas, e para ele matas o novilho cevado!" </p><p> Mas o pai lhe disse: "Filho, tu estás sempre comigo, e tudo o que é meu é teu. Mas era preciso que festejássemos e nos alegrássemos, pois esse teu irmão estava morto e tornou a viver; ele estava perdido e foi reencontrado!" </p><p style="text-align: left;">Extraído do Evangelho Segundo São Lucas, capítulo 15, 11-32. <i>Bíblia de Jerusalém</i>, Ed. Paulus, São Paulo, 2019.</p>Sérgio Freitas Milan de Almeidahttp://www.blogger.com/profile/18218908588520138151noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-2109283952580855674.post-33645743977438523272021-03-20T08:51:00.002-03:002021-03-20T08:51:51.252-03:00A Luís de Camões - Jorge Luis Borges<p><br /></p><div>Sem pena e sem ira o tempo vela</div><div>as heroicas espadas. Pobre e triste</div><div>a tua pátria saudosa preferiste</div><div>retornar, capitão, morrendo nela,</div><div>e com ela. No mágico deserto</div><div>a flor de Portugal se havia perdido</div><div>e o áspero espanhol, antes vencido,</div><div>ameaçava o seu flanco aberto.</div><div>Quero saber se aquém dessa ribeira</div><div>extrema compreendeste humildemente</div><div>que todo o perdido, o Ocidente</div><div>e o Oriente, o aço e a bandeira, </div><div>perduraria (alheio a toda humana</div><div>mutação) em tua <i>Eneida </i>lusitana.</div><div><br /></div><div>A Luis de Camoens</div><div><br /></div><div>Sin lástima y sin ira el tiempo mella</div><div>las heroicas espadas. Pobre y triste</div><div>a tu patria nostálgica volviste,</div><div>oh capitán, para morir en ella </div><div>y con ella. En el mágico desierto</div><div>la flor de Portugal se había perdido</div><div>y el áspero español, antes vencido,</div><div>amenazaba su costado abierto.</div><div>Quiero saber si aquende la ribera</div><div>última comprendiste humildemente</div><div>que todo lo perdido, el Occidente</div><div>y el Oriente, el acero y la bandera,</div><div>perduraría (ajeno a toda humana</div><div>mutación) en tu <i>Eneida </i>lusitana. </div><div><div><br /></div><div> Jorge Luis Borges, <i>in </i>O fazedor (1960)</div></div>Sérgio Freitas Milan de Almeidahttp://www.blogger.com/profile/18218908588520138151noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-2109283952580855674.post-245830660379338792021-03-19T22:05:00.003-03:002021-03-19T22:05:56.063-03:00Os Borges - Jorge Luis Borges<p>Bem pouco sei de meus antecessores</p><p>Portugueses, os Borges: vaga gente</p><p>Que prossegue em minha carne, obscuramente,</p><p>Seus hábitos, rigores e temores.</p><p>Tênues como se nunca houvessem sido</p><p>E alheios aos trâmites da arte,</p><p>Indecifravelmente fazem parte</p><p>Do tempo, dessa terra e do olvido.</p><p>Melhor assim. Vencida a peleia,</p><p>São Portugal, são a famosa gente</p><p>Que forçou as muralhas do Oriente</p><p>E fez-se ao mar e ao outro mar de areia.</p><p>São o rei que no místico deserto</p><p>Perdeu-se e o que jura não estar morto. </p><p> </p><p>Jorge Luis Borges, <i>in</i> O fazedor (1960)</p>Sérgio Freitas Milan de Almeidahttp://www.blogger.com/profile/18218908588520138151noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-2109283952580855674.post-71603444516953628672020-12-21T10:40:00.006-03:002021-05-04T15:19:08.560-03:00Aparências - Antonio Cicero<p style="text-align: center;">Não sou mais tolo não mais me queixo:</p><p style="text-align: center;">enganassem-me mais desenganassem-me mais</p><p style="text-align: center;">mais rápidas mais vorazes e arrebatadoras</p><p style="text-align: center;">mais volúveis mais voláteis</p><p style="text-align: center;">mais aparecessem para mim e desaparecessem</p><p style="text-align: center;">mais velassem mais desvelassem mais revelassem mais re-</p><p style="text-align: center;">velassem</p><p style="text-align: center;">mais</p><p style="text-align: center;"><br /></p><p style="text-align: center;">eu viveria tantas mortes</p><p style="text-align: center;">morreria tantas vidas</p><p style="text-align: center;">jamais me queixaria</p><p style="text-align: center;">jamais.</p><p style="text-align: center;"><br /></p><p>CICERO, Antonio. <i>Porventura</i>. Rio de Janeiro, Ed. Record, 2012.</p>Sérgio Freitas Milan de Almeidahttp://www.blogger.com/profile/18218908588520138151noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-2109283952580855674.post-55945661388527996892020-04-05T13:35:00.001-03:002020-04-05T13:36:46.483-03:00Língua portuguesa - Olavo BilacLíngua portuguesa<br />
<br />
Última flor do Lácio, inculta e bela,<br />
És, a um tempo, esplendor e sepultura:<br />
Ouro nativo, que na ganga impura<br />
A bruta mina entre os cascalhos vela...<br />
<br />
Amo-te assim, desconhecida e obscura.<br />
Tuba de alto clangor, lira singela,<br />
Que tens o trom e o silvo da procela,<br />
E o arrolo da saudade e da ternura!<br />
<br />
Amo o teu viço agreste e o teu aroma<br />
De virgens selvas e de oceano largo!<br />
Amo-te, ó rude e doloroso idioma,<br />
<br />
em que da voz materna ouvi: "meu filho!",<br />
E em que Camões chorou, no exílio amargo,<br />
O gênio sem ventura e o amor sem brilho!<br />
<br />
<div style="text-align: right;">
Olavo Bilac (1865-1918)</div>
Sérgio Freitas Milan de Almeidahttp://www.blogger.com/profile/18218908588520138151noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-2109283952580855674.post-85425632903902159052019-07-05T22:11:00.000-03:002019-07-05T22:13:26.395-03:00As palavras - Vanessa da Mata<g-expandable-container aria-expanded="true" class="r-i2EWrQDK1Ftg" data-rtid="i2EWrQDK1Ftg" data-slct="mnr-c" jsaction="xpd_a:r.QAtpGcnvAPU;xpd_c:r.2jLl4OaUpYU;xpd_e:r.9AlAr7I8i7Y;xpd_r:r.DVWvKvQi1K0;xpd_rt:r.fEHd7CK_8uk;xpd_rm:r.AkQMWiVNEOs;xpd_t:r.woqmWPedZAc" jsl="$t t-J42MXltZJ-s;$x 0;" style="background-color: white; color: #222222; display: block; font-family: arial, sans-serif; font-size: small;"></g-expandable-container><br />
<div class="i2EWrQDK1Ftg-pvVKlfEP0Yk">
<div class="Oh5wg" style="margin: 0px 16px;">
<g-expandable-content aria-hidden="false" class="PZPZlf kno-fb-ctx r-i_5bgbM80gz8" data-eb="0" data-lyricid="Musixmatch9706725" data-mt="0" jsl="$t t-mrrOl6lxOK8;$x 0;" jsname="YyJftb" style="display: block; transition: none 0s ease 0s;"></g-expandable-content><br />
<div jsname="U8S5sf">
<span jsname="YS01Ge">As palavras saem quase sem querer</span><br />
<span jsname="YS01Ge">Rezam por nós dois</span><br />
<span jsname="YS01Ge">Tome conta do que vai dizer</span></div>
<div class="secrsf" jsname="U8S5sf" style="margin-top: 13px;">
<span jsname="YS01Ge">Elas estão dentro dos meus olhos</span><br />
<span jsname="YS01Ge">Da minha boca, dos meus ombros</span><br />
<span jsname="YS01Ge">Se quiser ouvir</span><br />
<span jsname="YS01Ge">É fácil perceber</span></div>
<div class="secrsf" jsname="U8S5sf" style="margin-top: 13px;">
<span jsname="YS01Ge">Não me acerte</span><br />
<span jsname="YS01Ge">Não me cerque</span><br />
<span jsname="YS01Ge">Me dê absolvição</span><br />
<span jsname="YS01Ge">Faça luz onde há involução</span></div>
<div class="secrsf" jsname="U8S5sf" style="margin-top: 13px;">
<span jsname="YS01Ge">Escolha os versos para ser meu bem e não ser meu mal</span><br />
<span jsname="YS01Ge">Reabilite o meu coração</span></div>
<div class="secrsf" jsname="U8S5sf" style="margin-top: 13px;">
<span jsname="YS01Ge">Tentei</span><br />
<span jsname="YS01Ge">Rasguei sua alma e pus no fogo</span><br />
<span jsname="YS01Ge">Não assoprei</span><br />
<span jsname="YS01Ge">Não relutei</span><br />
<span jsname="YS01Ge">Os buracos que eu cavei</span><br />
<span jsname="YS01Ge">Não quis rever</span></div>
<div class="secrsf" jsname="U8S5sf" style="margin-top: 13px;">
<span jsname="YS01Ge">Mas o amargo delas resvalou em mim</span><br />
<span jsname="YS01Ge">Não me deu direito de viver em paz</span><br />
<span jsname="YS01Ge">Estou aqui para te pedir perdão</span></div>
<div class="secrsf" jsname="U8S5sf" style="margin-top: 13px;">
<span jsname="YS01Ge">Não me acerte</span><br />
<span jsname="YS01Ge">Não me cerque</span><br />
<span jsname="YS01Ge">Me dê absolvição</span><br />
<span jsname="YS01Ge">Faça luz onde há involução</span></div>
<div class="secrsf" jsname="U8S5sf" style="margin-top: 13px;">
<span jsname="YS01Ge">Escolha os versos para ser meu bem e não ser meu mal</span></div>
<div class="secrsf" jsname="U8S5sf" style="margin-top: 13px;">
<span jsname="YS01Ge">Reabilite o meu coração</span></div>
<div class="secrsf" jsname="U8S5sf" style="margin-top: 13px;">
<span jsname="YS01Ge">As palavras fogem</span><br />
<span jsname="YS01Ge">Se você deixar</span><br />
<span jsname="YS01Ge">O impacto é grande demais</span><br />
<span jsname="YS01Ge">Cidades inteiras nascem a partir daí</span></div>
<div class="secrsf" jsname="U8S5sf" style="margin-top: 13px;">
<span jsname="YS01Ge">Violentam, enlouquecem ou me fazem dormir</span><br />
<span jsname="YS01Ge">Adoecem, curam ou me dão limites</span><br />
<span jsname="YS01Ge">Vá com carinho no que vai dizer</span></div>
<div class="secrsf" jsname="U8S5sf" style="margin-top: 13px;">
<span jsname="YS01Ge">Não me acerte</span><br />
<span jsname="YS01Ge">Não me cerque</span><br />
<span jsname="YS01Ge">Me dê absolvição</span><br />
<span jsname="YS01Ge">Faça luz onde há involução</span></div>
<div class="secrsf" jsname="U8S5sf" style="margin-top: 13px;">
<span jsname="YS01Ge">Escolha os versos para ser meu bem e não ser meu mal</span><br />
<span jsname="YS01Ge">Reabilite o meu coração</span></div>
<g-expandable-content aria-hidden="false" class="r-icUBsL7JMA_o" data-eb="0" data-mt="0" data-ved="2ahUKEwivh4q4jJ_jAhWVGbkGHYl_A1QQycMBKAEwAXoECAoQCQ" jsl="$t t-mrrOl6lxOK8;$x 0;" style="display: block; transition: none 0s ease 0s;"><div class="rvntgc">
<div style="color: #70757a; font-size: 12px; font-weight: 400; line-height: 16px; margin-top: 13px;">
Compositores: Vanessa Sigiane da Mata Ferreira</div>
<div style="color: #70757a; font-size: 12px; font-weight: 400; line-height: 16px; margin-top: 13px;">
Letra de As Palavras © Sereia De Agua Doce</div>
<div style="color: #70757a; font-size: 12px; font-weight: 400; line-height: 16px; margin-top: 13px;">
<div class="mod" data-attrid="kc:/music/recording_cluster:first album" data-hveid="CAoQFw" data-md="1001" data-ved="2ahUKEwivh4q4jJ_jAhWVGbkGHYl_A1QQkCkoBTAFegQIChAX" lang="pt-BR" style="background-color: white; clear: none; color: #222222; font-family: arial, sans-serif; font-size: small; line-height: 1.54; padding-left: 16px; padding-right: 16px;">
<div class="Z1hOCe">
<div class="zloOqf PZPZlf kno-fb-ctx" data-ved="2ahUKEwivh4q4jJ_jAhWVGbkGHYl_A1QQyxMoADAFegQIChAY" style="margin-top: 7px;">
<span class="w8qArf" style="font-weight: bolder;"><a class="fl" data-ved="2ahUKEwivh4q4jJ_jAhWVGbkGHYl_A1QQ6BMoADAFegQIChAZ" href="https://www.google.com.br/search?q=vanessa+da+mata+as+palavras+%C3%A1lbum&stick=H4sIAAAAAAAAAOPgE-LRT9c3LDYwLakoNCzQUs9OttLPLS3OTNYvSk3OL0rJzEuPT84pLS5JLbJKyywqLlFIzEkqzV3EqlSWmJdaXJyokJKokJtYkqiQWKxQkJiTWFYEZBxeCFIEAEzcUwVeAAAA&sa=X&ved=2ahUKEwivh4q4jJ_jAhWVGbkGHYl_A1QQ6BMoADAFegQIChAZ" style="color: #1a0dab; cursor: pointer; text-decoration-line: none;">Álbum</a>: </span><span class="LrzXr kno-fv"><a class="fl" data-ved="2ahUKEwivh4q4jJ_jAhWVGbkGHYl_A1QQmxMoATAFegQIChAa" href="https://www.google.com.br/search?q=as+palavras+bicicletas,+bolos+e+outras+alegrias&stick=H4sIAAAAAAAAABXJQQoCMQwAwJMgIh58QfAiiJDdgx72M5LGWoPptiat-B5fqt4GZrnZrjHh6MOpvZ9j3a0w4-Dzud75sH_whLm7MFrkYleZ04W1e4s23cS8AWno-bNAcqik9LIfgrCwxkZ-hFC0OEQovf2LNCYT8i_dOaN6dwAAAA&sa=X&ved=2ahUKEwivh4q4jJ_jAhWVGbkGHYl_A1QQmxMoATAFegQIChAa" style="color: #1a0dab; cursor: pointer; text-decoration-line: none;">Bicicletas, Bolos e Outras Alegrias</a></span></div>
</div>
</div>
<div class="mod" data-attrid="kc:/music/recording_cluster:release date" data-hveid="CAoQGw" data-md="1001" data-ved="2ahUKEwivh4q4jJ_jAhWVGbkGHYl_A1QQkCkoBjAGegQIChAb" lang="pt-BR" style="background-color: white; clear: none; color: #222222; font-family: arial, sans-serif; font-size: small; line-height: 1.54; padding-left: 16px; padding-right: 16px;">
<div class="Z1hOCe">
<div class="zloOqf PZPZlf kno-fb-ctx" data-ved="2ahUKEwivh4q4jJ_jAhWVGbkGHYl_A1QQyxMoADAGegQIChAc" style="margin-top: 7px;">
<span class="w8qArf" style="font-weight: bolder;"><a class="fl" data-ved="2ahUKEwivh4q4jJ_jAhWVGbkGHYl_A1QQ6BMoADAGegQIChAd" href="https://www.google.com.br/search?q=vanessa+da+mata+as+palavras+data+de+lan%C3%A7amento&stick=H4sIAAAAAAAAAOPgE-LRT9c3LDYwLakoNCzQ0shOttLPLS3OTNYvSk3OL0rJzEuPT84pLS5JLbIqSs1JTSxOVUhJLEldxKpflpiXWlycCOQq5CaWJCokFisUJOYklhUBGSkggZRUhZzEvMPLE3NT80ryAROWlmdsAAAA&sa=X&ved=2ahUKEwivh4q4jJ_jAhWVGbkGHYl_A1QQ6BMoADAGegQIChAd" style="color: #1a0dab; cursor: pointer; text-decoration-line: none;">Data de lançamento</a>: </span><span class="LrzXr kno-fv">2010</span></div>
</div>
</div>
</div>
</div>
</g-expandable-content></div>
</div>
Sérgio Freitas Milan de Almeidahttp://www.blogger.com/profile/18218908588520138151noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-2109283952580855674.post-67246018720709350952019-06-02T10:20:00.000-03:002019-06-02T10:20:09.518-03:00No caminho com Maiakóvski - Eduardo Alves da CostaAssim como a criança<br />
humildemente afaga<br />
a imagem do herói,<br />
assim me aproximo de ti, Maiakóvski.<br />
Não importa o que me possa acontecer<br />
por andar ombro a ombro<br />
com um poeta soviético.<br />
Lendo teus versos,<br />
aprendi a ter coragem.<br />
<br />
Tu sabes,<br />
conheces melhor do que eu<br />
a velha história.<br />
Na primeira noite eles se aproximam<br />
e roubam uma flor<br />
do nosso jardim.<br />
E não dizemos nada.<br />
Na segunda noite, já não se escondem:<br />
pisam as flores,<br />
matam nosso cão,<br />
e não dizemos nada.<br />
Até que um dia,<br />
o mais frágil deles<br />
entra sozinho em nossa casa,<br />
rouba-nos a luz, e,<br />
conhecendo nosso medo,<br />
arranca-nos a voz da garganta.<br />
E já não podemos dizer nada.<br />
<br />
Nos dias que correm<br />
a ninguém é dado<br />
repousar a cabeça<br />
alheia ao terror.<br />
Os humildes baixam a cerviz;<br />
e nós, que não temos pacto algum<br />
com os senhores do mundo,<br />
por temor nos calamos.<br />
No silêncio de meu quarto<br />
a ousadia me afogueia as faces<br />
e eu fantasio um levante;<br />
mas amanhã,<br />
diante do juiz,<br />
talvez meus lábios<br />
calem a verdade<br />
como um foco de germes<br />
capaz de me destruir.<br />
<br />
Olho ao redor<br />
e o que vejo<br />
e acabo por repetir<br />
são mentiras.<br />
Mal sabe a criança dizer <i>mãe</i><br />
e a propaganda lhe destrói a consciência.<br />
A mim, quase me arrastam<br />
pela gola do paletó<br />
à porta do templo<br />
e me pedem que aguarde<br />
até que a Democracia<br />
se digne a aparecer no balcão.<br />
Mas eu sei,<br />
porque não estou amedrontado<br />
a ponto de cegar, que ela tem uma espada<br />
a lhe espetar as costelas<br />
e o riso que nos mostra<br />
é uma tênue cortina<br />
lançada sobre os arsenais.<br />
<br />
Vamos ao campo<br />
e não os vemos ao nosso lado,<br />
no plantio.<br />
Mas ao tempo da colheita<br />
lá estão<br />
e acabam por nos roubar<br />
até o último grão de trigo.<br />
Dizem-nos que de nós emana o poder<br />
mas sempre o temos contra nós.<br />
Dizem-nos que é preciso<br />
defender nossos lares<br />
mas se nos rebelamos contra a opressão<br />
é sobre nós que marcham os soldados.<br />
<br />
E por temor eu me calo,<br />
por temor aceito a condição<br />
de falso democrata<br />
e rotulo meus gestos<br />
com a palavra liberdade,<br />
procurando, num sorriso,<br />
esconder minha dor<br />
diante de meus superiores.<br />
Mas dentro de mim,<br />
com a potência de um milhão de vozes,<br />
o coração grita – MENTIRA!<br />
<br />
COSTA, Eduardo Alves da. No caminho, com Maiakóvski. Geração Editorial, São Paulo, 2003.Sérgio Freitas Milan de Almeidahttp://www.blogger.com/profile/18218908588520138151noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-2109283952580855674.post-83404830470510973932017-11-18T10:12:00.002-02:002017-11-18T10:12:23.693-02:00Um doutor - Manoel de BarrosUm doutor veio formado de São Paulo. Almofadinha. Suspensórios, colete, botina preta de presilhas. E um trejeito no andar de pomba rolinha. No verbo, diga-se de logo, usava naftalina. Por acaso, era um pernóstico no falar. Pessoas simples da cidade lhe admiravam a pose de doutor. Eu só via o casco. Fomos de tarde no <i>Bar O Ponto</i>. Ele, meu pai e este que vos fala. Este que vos fala era um rebelde adolescente. De pronto o Doutor falou pra meu pai: Meus parabéns Seo João, parece que seu filho agora endireitou! E meu pai: Ele nunca foi torto. Pintou um clima de urubu com mandioca entre nós. O doutor pisou no rabo, eu pensei. Ele ainda perguntou: E o comunismo dele? Está quarando na beira do rio entre as capivaras, o pai respondeu. O doutor se levantou da mesa e saiu com seu andar de vespa magoada.<br />
BARROS, Manoel de. <i>Memórias inventadas - A segunda infância</i>. Ed. Planeta, São Paulo, 2006.Sérgio Freitas Milan de Almeidahttp://www.blogger.com/profile/18218908588520138151noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-2109283952580855674.post-40755896655121981792017-11-18T09:45:00.006-02:002017-12-06T06:54:12.515-02:00Sobre importâncias [2] - Manoel de BarrosUm fotógrafo-artista me disse outra vez: Veja que pingo de sol no couro de um lagarto é para nós mais importante do que o sol inteiro no corpo do mar. Falou mais: que a importância de uma coisa não se mede com fita métrica nem com balanças nem com barômetros etc. Que a importância de uma coisa há que ser medida pelo encantamento que a coisa produza em nós. Assim um passarinho nas mãos de um criança é mais importante para ela do que a Cordilheira dos Andes. Que o osso é mais importante para o cachorro do que uma pedra de diamante. E um dente de macaco da era terciária é mais importante para os arqueólogos do que a Torre Eifel. (Veja que só um dente de macaco!) Que uma boneca de trapos que abre e fecha os olhinhos azuis nas mãos de uma criança é mais importante para ela do que o Empire State Building. Que o cu de uma formiga é mais importante para o poeta do que uma Usina Nuclear. Sem precisar medir o ânus da formiga. Que o canto das águas e das rãs nas pedras é mais importante para os músicos do que os ruídos dos motores da Fórmula 1. Há um desagero em mim de aceitar essas medidas. Porém não sei se isso é um defeito do olho ou da razão. Se é defeito da alma ou do corpo. Se fizerem algum exame mental em mim por tais julgamentos, vão encontrar que eu gosto mais de conversar sobre restos de comida com as moscas do que com homens doutos.<br />
BARROS, Manoel de. <i>Memórias inventadas - A segunda infância</i>, Ed. Planeta, São Paulo, 2006.Sérgio Freitas Milan de Almeidahttp://www.blogger.com/profile/18218908588520138151noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-2109283952580855674.post-13330043881489941862017-05-14T11:31:00.000-03:002017-05-14T11:34:34.824-03:00Os teólogos - Jorge Luis Borges<div style="text-align: justify;">
Arrasado o jardim, profanados os cálices e
os altares, entraram a cavalo os hunos na biblioteca monástica e
rasgaram os livros incompreensíveis e os injuriaram e queimaram, talvez
temerosos de que as letras encobrissem blasfêmias contra seu deus, que
era uma cimitarra de ferro. Arderam palimpsestos e códices, mas no
coração da fogueira, entre as cinzas, permaneceu quase intacto o livro
duodécimo da <i>Civitas Dei</i>, que narra que Platão ensinou em Atenas que, no
fim dos séculos, todas as coisas recuperarão seu estado anterior, e que
ele, em Atenas, diante do mesmo auditório, de novo ensinará essa
doutrina. O texto que as chamas perdoaram desfrutou de veneração
especial e os que o leram e releram nessa remota província esqueceram
que o autor só declarou tal doutrina para poder melhor refutá-la. Um
século depois, Aureliano, coadjutor de Aquiléia, soube que às margens do
Danúbio a novíssima seita dos <i>monótonos </i>(chamados também <i>anulares</i>)
professava que a história é um círculo e que nada é que não tenha sido e
que não será. Nas montanhas, a Roda e a Serpente tinham deslocado a
Cruz. Todos temiam, mas todos se confortavam com o boato de que João de
Panonia, que se distinguira com um tratado sobre o sétimo atributo de
Deus, ia impugnar tão abominável heresia.</div>
<div style="text-align: justify;">
Aureliano deplorou essas notícias,
sobretudo a última. Sabia que em matéria teológica não há novidade sem
perigo; depois refletiu que a tese de um tempo circular era demasiado
dissímil, demasiado assombrosa para que o perigo fosse grave. (As
heresias que devemos temer são as que podem confundir-se com a
ortodoxia.) Mais lhe doeu a intervenção – a intrusão – de João de
Panonia. Havia dois anos, ele usurpara com seu palavroso <i>De Septima
Affectione Dei Sive de Aeternitate</i> um assunto da especialidade de
Aureliano; agora, como se o problema do tempo lhe pertencesse, ia
retificar, talvez com argumentos de Procusto, com triagas mais temíveis
que a Serpente, os anulares… Nessa noite, Aureliano folheou o antigo
diálogo de Plutarco sobre a cessação dos oráculos; no parágrafo vinte e
nove, leu uma burla contra os estoicos que defendem um infinito ciclo de
mundos, com infinitos sóis, luas, Apolos, Dianas e Poseidons. O achado
pareceu-lhe prognóstico favorável; resolveu adiantar-se a João de
Panonia e refutar os heréticos da Roda.</div>
<div style="text-align: justify;">
Há quem procure o amor de uma mulher para
esquecer-se dela, para não pensar mais nela; Aureliano, da mesma forma,
queria superar João de Panonia para curar-se do rancor que ele lhe
infundia, não para fazer-lhe mal. Temperado pelo mero trabalho, pela
construção de silogismos e pela invenção de injúrias, pelos <i>nego </i>e os
<i>autem </i>e os <i>nequaquam</i>, pôde esquecer esse rancor. Erigiu vastos e quase
inextricáveis períodos, entrecortados por incisos, em que a negligência e
o solecismo pareciam formas de desdém. Da cacofonia fez um instrumento.
Previu que João ia fulminar os anulares com gravidade profética; para
não coincidir com ele, optou pelo escárnio. Agostinho tinha escrito que
Jesus é a via reta que nos salva do labirinto circular em que andam os
ímpios; Aureliano, laboriosamente trivial, comparou-os a Ixion, ao
fígado de Prometeu, a Sísifo, àquele rei de Tebas que viu dois sóis, à
gaguice, a louros, a espelhos, a ecos, a mulas de carga e a silogismos
bicornutos. (As fábulas gentílicas perduravam, rebaixadas a adornos.)
Como todo possuidor de uma biblioteca, Aureliano se sabia culpado de não
conhecê-la até o fim; essa controvérsia permitiu-lhe chegar a um acordo
com muitos livros que pareciam censurar sua incúria. Assim pôde
engastar uma passagem da obra <i>De Principiis</i> de Orígenes, na qual se nega
que Judas Iscariotes voltará a vender o Senhor, e Paulo, a presenciar o
martírio de Estêvão em Jerusalém, e outra dos <i>Academica Priora</i> de
Cícero, em que este zomba dos que sonham que, enquanto ele conversa com
Lúculo, outros Lúculos e outros Cíceros, em número infinito, dizem
exatamente o mesmo, em infinitos mundos iguais. Além disso, esgrimiu
contra os monótonos o texto de Plutarco e denunciou o escândalo de que a
um idólatra valesse mais o <i>lumen naturae</i> que a eles a palavra de Deus.
Nove dias lhe tomou esse trabalho; no décimo, foi-lhe enviada uma cópia
da refutação de João de Panonia.</div>
<div style="text-align: justify;">
Era quase irrisoriamente breve. Aureliano
olhou-a com desdém e depois com temor. A primeira parte glosava os
versículos finais do nono capítulo da Epístola aos Hebreus, na qual se
diz que Jesus não foi sacrificado muitas vezes desde o início do mundo,
senão agora uma vez na consumação dos séculos. A segunda alegava o
preceito bíblico sobre as vãs repetições dos gentios (Mateus 6, 7) e
aquela passagem do sétimo livro de Plínio, que pondera não haver no
vasto universo duas faces iguais. João de Panonia declarava que tampouco
há duas almas e que o pecador mais vil é precioso como o sangue que por
ele verteu Jesus Cristo. O ato de um único homem (afirmou) pesa mais
que os nove céus concêntricos, e imaginar que possa perder-se e voltar é
uma aparatosa frivolidade. O tempo não refaz o que perdemos; a
eternidade guarda-o para a glória e também para o fogo. O tratado era
límpido, universal; não parecia redigido por uma pessoa específica, mas
por qualquer homem ou, talvez, por todos os homens.</div>
<div style="text-align: justify;">
Aureliano sentiu uma humilhação quase
física. Pensou em destruir ou reformar seu próprio trabalho; em seguida,
com rancorosa probidade, mandou-o para Roma sem modificar uma letra.
Meses depois, quando se reuniu o Concílio de Pérgamo, o teólogo
encarregado de impugnar os erros dos monótonos foi (previsivelmente)
João de Panonia; sua douta e comedida refutação bastou para que Euforbo,
heresiarca, fosse condenado à fogueira. “Isto ocorreu e voltará a
ocorrer”, disse Euforbo. “Não acendeis uma pira, acendeis um labirinto
de fogo. Se aqui se unissem todas as fogueiras que eu tenho sido, não
caberiam na terra e os anjos ficariam cegos. Isto eu falei muitas
vezes.” Depois gritou, porque as chamas o atingiram.</div>
<div style="text-align: justify;">
Caiu a Roda diante da Cruz [1], mas
Aureliano e João prosseguiram sua batalha secreta. Militavam os dois no
mesmo exército, ansiavam pelo mesmo galardão, guerreavam contra o mesmo
Inimigo, mas Aureliano não escreveu uma palavra que inconfessavelmente
não pretendesse superar João. Seu duelo foi invisível; se os numerosos
índices não me enganam, não figura uma única vez o nome do <i>outro </i>nos
muitos volumes de Aureliano que a Patrologia de Migne entesoura. (Das
obras de João, só permaneceram vinte palavras.) Os dois desaprovaram os
anátemas do segundo Concílio de Constantinopla; os dois perseguiram os
arianos, que negavam a geração eterna do Filho; os dois testemunharam a
ortodoxia da <i>Topographia Christiana</i> de Cosmas, que ensina ser a Terra
quadrangular, como o tabernáculo hebreu. Desgraçadamente, pelos quatro
ângulos da terra difundiu-se outra tempestuosa heresia. Oriunda do Egito
ou da Ásia (porque os testemunhos diferem e Bousset não quer admitir as
razões de Harnack), infestou as províncias orientais e erigiu
santuários na Macedônia, em Cartago e em Tréveris. Parecia estar em
todas as partes; foi dito que nas dioceses da Bretanha tinham sido
invertidos os crucifixos e que a imagem do Senhor, em Cesaréia, viu-se
suplantada por um espelho. O espelho e o óbolo eram emblemas dos novos
cismáticos.</div>
<div style="text-align: justify;">
A história os conhece por muitos nomes
(<i>especulares</i>, <i>abismais</i>, <i>cainitas</i>), mas de todos o mais aceito é
<i>histriões</i>, dado por Aureliano e que eles com atrevimento adotaram. Na
Frigia foram chamados de <i>simulacros</i>, e também na Dardânia. João
Damasceno chamou-os de <i>formas</i>; é justo advertir que a passagem tem sido
repelida por Erfjord. Não há heresiólogo que, com espanto, não aluda a
seus desmedidos costumes. Muitos histriões professaram o ascetismo; um
que outro se mutilou, como Orígenes; outros moraram debaixo da terra,
nas cloacas; outros arrancaram os olhos; outros (os <i>nabucodonosores </i>de
Nitria) “pastavam como os bois e seu cabelo crescia como as penas da
águia”. Da mortificação e do rigor passavam, muitas vezes, ao crime;
certas comunidades toleravam o roubo; outras, o homicídio; outras, a
sodomia, o incesto e a bestialidade. Todas eram blasfemas; não só
maldiziam o Deus cristão como as arcanas divindades de seu próprio
panteão. Maquinaram livros sagrados, cujo desaparecimento os doutos
deploram. Sir Thomas Browne, por volta de 1658, escreveu: “O tempo
aniquilou os ambiciosos Evangelhos <i>Histriônicos</i>, não as Injúrias com que
se fustigou sua Impiedade”; Erfjord sugeriu que essas “injúrias” (que
um códice grego preserva) são os evangelhos perdidos. Isso é
incompreensível, se ignoramos a cosmologia dos histriões.</div>
<div style="text-align: justify;">
Nos livros herméticos está escrito que o
que existe embaixo é igual ao que existe em cima, e o que existe em
cima, igual ao que existe embaixo; no Zohar, que o mundo inferior é
reflexo do superior. Os histriões fundaram sua doutrina sobre uma
perversão dessa ideia. Invocaram Mateus 6, 12 (“perdoa nossas dívidas,
como nós perdoamos a nossos devedores”) e 11, 12 (“o reino dos céus
adquire-se à força”) para demonstrar que a terra influi no céu, e I
Coríntios 13,12 (“vemos agora como que por um espelho, em enigma”) para
demonstrar que tudo o que vemos é falso. Talvez contaminados pelos
monótonos, imaginaram que todo homem é dois homens e que o verdadeiro é o
outro, o que está no céu. Também imaginaram que nossos atos projetam um
reflexo invertido, de maneira que, se velamos, o outro dorme, se
fornicamos, o outro é casto, se roubamos, o outro é generoso. Mortos,
nos uniremos a ele e seremos ele. (Algum eco dessas doutrinas perdurou
em Bloy.) Outros histriões discorreram que o mundo acabaria quando se
esgotasse o número de suas possibilidades; já que não pode haver
repetições, o justo deve eliminar (cometer) os atos mais infames, para
que estes não manchem o futuro e para acelerar a vinda do reino de
Jesus. Esse artigo foi negado por outras seitas, que defenderam que a
história do mundo deve cumprir-se em cada homem. Os demais, como
Pitágoras, deverão transmigrar por muitos corpos antes de conseguir sua
liberação; alguns, os proteicos, “no termo de uma só vida são leões, são
dragões, são javalis, são água e são uma árvore”. Demóstenes cita a
purificação pela lama a que eram submetidos os iniciados nos mistérios
órficos; os proteicos, analogicamente, procuraram a purificação pelo
mal. Entenderam, como Carpócrates, que ninguém sairá da prisão até pagar
o último óbolo (Lucas 12, 59), e costumavam ludibriar os penitentes com
este outro versículo: “Eu vim para que os homens tenham vida e para que
a tenham em abundância” (João 10,10). Também diziam que não ser malvado
é soberba satânica… Muitas e divergentes mitologias urdiram os
histriões; uns pregaram o ascetismo, outros a licenciosidade, todos a
confusão. Teopompo, histrião de Berenice, negou todas as fábulas; disse
que cada homem é um órgão que projeta a divindade para sentir o mundo.</div>
<div style="text-align: justify;">
Os hereges da diocese de Aureliano eram
dos que afirmavam que o tempo não tolera repetições, não dos que
afirmavam que todo ato se reflete no céu. Essa circunstância era
estranha; em um relatório às autoridades romanas, Aureliano mencionou-a.
O prelado que receberia o relatório era confessor da imperatriz;
ninguém ignorava que esse ministério exigente lhe vedava as íntimas
delícias da teologia especulativa. Seu secretário – antigo colaborador
de João de Panonia, agora inimizado com ele – gozava do renome de
pontualíssimo inquisidor de heterodoxias; Aureliano acrescentou uma
exposição da heresia histriônica, tal como esta se dava nos
conventículos de Gênova e de Aquileia. Redigiu alguns parágrafos; quando
quis escrever a tese horrível de que não existem dois instantes iguais,
sua pena se deteve. Não encontrou a fórmula necessária; as admoestações
da nova doutrina (“Queres ver o que não viram os olhos humanos? Olha a
lua. Queres ouvir o que os ouvidos não ouviram? Ouve o grito do pássaro.
Queres tocar o que não tocaram as mãos? Toca a terra. Digo,
verdadeiramente, que Deus está por criar o mundo”) eram bastante
afetadas e metafóricas para a transcrição. De repente, uma oração de
vinte palavras apresentou-se a seu espírito. Escreveu-a, jubiloso; logo
depois, inquietou-o a suspeita de que ela fosse de outro. No dia
seguinte, lembrou-se de que a lera havia muitos anos no <i>Adversus
Annulares</i> composto por João de Panonia. Verificou a citação; ali estava.
A incerteza o atormentou. Alterar ou suprimir essas palavras era
debilitar a expressão; deixá-las era plagiar um homem que ele abominava;
indicar a fonte era denunciá-lo. Implorou o socorro divino. No
princípio do segundo crepúsculo, seu anjo da guarda ditou-lhe uma
solução intermédia. Aureliano conservou as palavras, mas lhes antepôs
este aviso: “O que ladram agora os heresiarcas para confusão da fé,
disse-o neste século um varão doutíssimo, com mais irreflexão que
culpa”. Depois, aconteceu o temido, o esperado, o inevitável. Aureliano
teve de declarar quem era esse varão; João de Panonia foi acusado de
professar opiniões heréticas.</div>
<div style="text-align: justify;">
Quatro meses depois, um ferreiro de
Aventino, alucinado pelos enganos dos histriões, pôs sobre os ombros de
seu filhinho uma grande bola de ferro, a fim de que seu <i>outro </i>voasse. O
menino morreu; o horror produzido por esse crime impôs uma
irrepreensível severidade aos juízes de João. Este não quis retratar-se;
repetiu que negar sua proposição era incorrer na pestilencial heresia
dos monótonos. Não entendeu (não quis entender) que falar dos monótonos
era falar do que já estava esquecido. Com insistência um tanto senil,
desperdiçou os períodos mais brilhantes de suas velhas polêmicas; os
juízes nem sequer ouviam aquilo que outrora os arrebatara. Em lugar de
tratar de purificar-se da mais leve mácula de histrionismo, esforçou-se
em demonstrar que a proposição de que o acusavam era rigorosamente
ortodoxa. Discutiu com os homens de cuja sentença dependia sua sorte e
cometeu a máxima grosseria de fazê-lo com talento e com ironia. No dia
26 de outubro, depois de uma discussão que durou três dias e três
noites, sentenciaram-no a morrer na fogueira.</div>
<div style="text-align: justify;">
Aureliano presenciou a execução, porque
não o fazer seria confessar-se culpado. O lugar do suplício era uma
colina, em cujo verde pico havia uma estaca, fincada profundamente no
solo, e em torno dela muitas achas de lenha. Um ministro leu a sentença
do tribunal. Sob o sol das doze, João de Panonia jazia com o rosto no
pó, lançando uivos bestiais. Arranhava a terra, mas os verdugos o
ergueram, o despiram e por fim o amarraram ao pelourinho. Puseram-lhe à
cabeça uma coroa de palha untada de enxofre; ao lado, um exemplar do
pestilento <i>Adversus Annulares</i>. Chovera na noite anterior e a lenha ardia
mal. João de Panonia rezou em grego e depois em um idioma desconhecido.
A fogueira ia levá-lo quando Aureliano se atreveu a erguer os olhos. As
chamas ardentes se detiveram; Aureliano, pela primeira e última vez,
viu o rosto do odiado. Lembrou-lhe o de alguém, mas não pôde precisar de
quem. Depois, as chamas o perderam; depois, gritou e foi como se um
incêndio gritasse.</div>
<div style="text-align: justify;">
Plutarco conta que Júlio César chorou a
morte de Pompeu; Aureliano não chorou a de João, mas sentiu aquilo que
sentiria um homem curado de uma enfermidade incurável que já fosse parte
de sua vida. Em Aquileia, em Éfeso, na Macedônia, deixou que sobre si
passassem os anos. Procurou os difíceis limites do Império, os rudes
lamaçais e os contemplativos desertos, para que a solidão o ajudasse a
entender seu destino. Numa cela mauritana, na noite carregada de leões,
repensou a complexa acusação contra João de Panonia e justificou, pela
enésima vez, o veredicto. Custou-lhe mais justificar sua tortuosa
denúncia. Em Rusaddir pregou o anacrônico sermão <i>Luz das Luzes Acesa na
Carne de Um Réprobo</i>. Em Hibérnia, em uma das cabanas de um monastério
cercado pela selva, surpreendeu-o, numa noite até a alvorada, o rumor da
chuva. Lembrou-se de uma noite romana em que fora surpreendido, também,
por esse minucioso rumor. Um raio, ao meio-dia, incendiou as árvores e
Aureliano pôde morrer como morrera João.</div>
<div style="text-align: justify;">
O final da história só pode ser narrado
com metáforas, já que se passa no reino dos céus, onde não há tempo.
Talvez fosse oportuno dizer que Aureliano conversou com Deus e que Este
se interessa tão pouco por diferenças religiosas que o tomou por João de
Panonia. Isso, entretanto, insinuaria uma confusão na mente divina.
Mais correto é dizer que no paraíso Aureliano soube que, para a
insondável divindade, ele e João de Panonia (o ortodoxo e o herege, o
odiado e o que odeia, o acusador e a vítima) formavam uma única pessoa.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
[ 1 ] Nas cruzes rúnicas os dois emblemas inimigos convivem entrelaçados.<br />
<br />
Jorge Luis Borges<i>, in </i><b>O Aleph</b><i> </i>(1949). Tradução de Flávio José Cardozo.<i> </i>Editora Globo, S. Paulo, 1998.<i><br /></i>Sérgio Freitas Milan de Almeidahttp://www.blogger.com/profile/18218908588520138151noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-2109283952580855674.post-60732323750813670752016-09-23T17:33:00.004-03:002023-10-18T22:11:17.899-03:00As dores do mundo - Arthur Schopenhauer<div class="western" style="line-height: 100%; margin-bottom: 0cm; text-align: left;">
<span face=""arial" , sans-serif" style="font-size: 12pt;"><span style="color: #cfe2f3;"> </span><span> Se
a nossa existência não tem por fim imediato a dor, pode-se dizer
que não tem razão alguma de ser no mundo. Porque é absurdo admitir
que a dor sem fim que nasce da miséria inerente à vida e enche o
mundo seja apenas um puro acidente, e não o próprio fim. Cada
desgraça particular parece, é certo, uma exceção, mas a desgraça
geral é a regra.</span></span></div>
<div class="western" style="line-height: 100%; margin-bottom: 0cm; text-align: left;">
<span><span face=""arial" , sans-serif" style="font-size: 16px;"> </span><span face=""arial" , sans-serif" style="font-size: 16px;"> </span><span face=""arial" , sans-serif"><span style="font-size: 12pt;">Assim
como um regato corre sem ímpetos enquanto não encontra obstáculos,
do mesmo modo, na natureza animal, a vida corre inconsciente e
descuidosa quando coisa alguma se lhe opõe à vontade. Se a atenção
desperta, é porque a vontade não era livre e se produziu algum
choque. Tudo o que se ergue em frente da nossa vontade, tudo o que a
contraria ou lhe resiste, isto é, tudo o que há de desagradável e
de doloroso, sentimo-lo ato contínuo e muito nitidamente. Não nos
atentamos à saúde geral do nosso corpo, mas notamos o ponto ligeiro
onde o sapato nos molesta; não apreciamos o conjunto próspero dos
nossos negócios, e só pensamos numa ninharia insignificante que nos
desgosta. - O bem-estar e a felicidade são, portanto, negativos, só
a dor é positiva. </span></span>
</span></div>
<div class="western" style="line-height: 100%; margin-bottom: 0cm; text-align: left;">
<span><span face=""arial" , sans-serif" style="font-size: 16px;"> </span><span face=""arial" , sans-serif" style="font-size: 16px;"> </span><span face=""arial" , sans-serif"><span style="font-size: 12pt;">Não
conheço nada mais absurdo que a maior parte dos sistemas
metafísicos, que explicam o mal como uma coisa negativa; só ele,
pelo contrário, é positivo, visto que se faz sentir... O bem, a
felicidade, a satisfação são negativos, porque não fazem senão
suprimir um desejo e terminar um desgosto.</span></span></span></div>
<div class="western" style="line-height: 100%; margin-bottom: 0cm; text-align: left;">
<span><span face=""arial" , sans-serif" style="font-size: 16px;"> </span><span face=""arial" , sans-serif" style="font-size: 16px;"> </span><span face=""arial" , sans-serif"><span style="font-size: 12pt;">Acrescente-se
a isto que em geral achamos as alegrias abaixo da nossa expectativa,
ao passo que as dores a excedem sobremaneira.</span></span></span></div>
<div class="western" style="line-height: 100%; margin-bottom: 0cm; text-align: left;">
<span><span face=""arial" , sans-serif" style="font-size: 16px;"> </span><span face=""arial" , sans-serif" style="font-size: 16px;"> </span><span face=""arial" , sans-serif"><span style="font-size: 12pt;">Se
quereis num momento esclarecer-vos a este respeito, e saber se o
prazer é superior ao desgosto, ou se apenas se compensam, comparai a
impressão do animal que devora outro com a impressão do que é
devorado.</span></span></span></div>
<div class="western" style="line-height: 100%; margin-bottom: 0cm; text-align: left;">
<span><br />
</span></div>
<div class="western" style="line-height: 100%; margin-bottom: 0cm; text-align: left;">
<span><span face=""arial" , sans-serif" style="font-size: 16px;"> </span><span face=""arial" , sans-serif" style="font-size: 16px;"> </span><span face=""arial" , sans-serif"><span style="font-size: 12pt;">A
mais eficaz consolação em toda a desgraça, em todo o sofrimento, é
voltar os olhos para aqueles que são ainda mais desgraçados do que
nós: este remédio encontra-se ao alcance de todos. Mas que resulta
daí para o conjunto?</span></span></span></div>
<div class="western" style="line-height: 100%; margin-bottom: 0cm; text-align: left;">
<span><span face=""arial" , sans-serif" style="font-size: 16px;"> </span><span face=""arial" , sans-serif" style="font-size: 16px;"> </span><span face=""arial" , sans-serif"><span style="font-size: 12pt;">Semelhantes
aos carneiros que saltam no prado, enquanto, com o olhar, o
carniceiro faz a sua escolha no meio do rebanho, não sabemos, nos
nossos dias felizes, que desastre o destino nos prepara precisamente
a essa hora — doença, perseguição, ruína, mutilação,
cegueira, loucura, etc.</span></span></span></div>
<div class="western" style="line-height: 100%; margin-bottom: 0cm; text-align: left;">
<span><span face=""arial" , sans-serif" style="font-size: 16px;"> </span><span face=""arial" , sans-serif" style="font-size: 16px;"> </span><span face=""arial" , sans-serif"><span style="font-size: 12pt;">Tudo
o que procuramos colher resiste-nos; tudo tem uma vontade hostil que
é preciso vencer. Na vida dos povos, a História só nos aponta
guerras e sedições: os anos de paz não passam de curtos intervalos
de entreatos, uma vez por acaso. E da mesma maneira a vida do homem é
um combate perpétuo, não só contra males abstratos, a miséria ou
o aborrecimento, mas também contra os outros homens. Em toda a parte
se encontra um adversário: a vida é uma guerra sem tréguas, e
morre-se com as armas na mão.</span></span></span></div>
<div class="western" style="line-height: 100%; margin-bottom: 0cm; text-align: left;">
<span><br />
</span></div>
<div class="western" style="line-height: 100%; margin-bottom: 0cm; text-align: left;">
<span><span face=""arial" , sans-serif" style="font-size: 16px;"> </span><span face=""arial" , sans-serif" style="font-size: 16px;"> </span><span face=""arial" , sans-serif"><span style="font-size: 12pt;">Ao
tormento da existência vem ainda juntar-se a rapidez do tempo, que
nos inquieta, que não nos deixa respirar, e se conserva atrás de
cada um de nós como um vigia </span></span><span face=""arial" , sans-serif"><span style="font-size: 12pt;">f</span></span><span face=""arial" , sans-serif"><span style="font-size: 12pt;">orçando-</span></span><span face=""arial" , sans-serif"><span style="font-size: 12pt;">nos</span></span><span face=""arial" , sans-serif"><span style="font-size: 12pt;">
de chicote em punho. — Poupa apenas aqueles que entregou ao
aborrecimento.</span></span></span></div>
<div class="western" style="line-height: 100%; margin-bottom: 0cm; text-align: left;">
<span><br />
</span></div>
<div class="western" style="line-height: 100%; margin-bottom: 0cm; text-align: left;">
<span><span face=""arial" , sans-serif" style="font-size: 16px;"> </span><span face=""arial" , sans-serif" style="font-size: 16px;"> </span><span face=""arial" , sans-serif"><span style="font-size: 12pt;">Portanto,
assim como o nosso corpo rebentaria se estivesse sujeito à pressão
da atmosfera, do mesmo modo, se o peso da miséria, do desgosto, dos
reveses e dos vãos esforços fosse banido da vida do homem, o
excesso da sua arrogância seria tão desmedido que o faria em
bocados, ou pelo menos o conduziria à insânia mais desordenada e à
loucura furiosa. — Em todo o tempo, cada um precisa ter um certo
número de cuidados, de dores ou de miséria, do mesmo modo que o
navio carece de lastro para manter-</span></span><span face=""arial" , sans-serif"><span style="font-size: 12pt;">se</span></span><span face=""arial" , sans-serif"><span style="font-size: 12pt;">
em equilíbrio e andar direito.</span></span></span></div>
<div class="western" style="line-height: 100%; margin-bottom: 0cm; text-align: left;">
<span><span face=""arial" , sans-serif" style="font-size: 16px;"> </span><span face=""arial" , sans-serif" style="font-size: 16px;"> </span><span face=""arial" , sans-serif"><span style="font-size: 12pt;">Trabalho,
tormento, desgosto e miséria, tal é sem dúvida durante a vida
inteira o quinhão de quase todos os homens. Mas se todos os desejos,
apenas formados, fossem imediatamente realizados, com que se
preencheria a vida humana, em que se empregaria o tempo? Coloque-se
esta raça num país de fadas, onde tudo cresceria espontaneamente,
onde as calhandras voariam já assadas ao alcance de todas as bocas,
onde todos encontrariam sem dificuldade a sua amada e a obteriam o
mais facilmente possível — ver-se-ia então os homens morrerem de
tédio, ou enforcarem-se, outros disputarem, matarem-se, e
causarem-se mutuamente mais sofrimentos do que a natureza agora lhes
impõe. — Assim, para semelhante raça, nenhum outro teatro,
nenhuma outra existência conviriam.</span></span></span></div>
<div class="western" style="line-height: 100%; margin-bottom: 0cm; text-align: left;">
<span><br />
</span></div>
<div class="western" style="line-height: 100%; margin-bottom: 0cm; text-align: left;">
<span><span face=""arial" , sans-serif" style="font-size: 16px;"> </span><span face=""arial" , sans-serif" style="font-size: 16px;"> </span><span face=""arial" , sans-serif"><span style="font-size: 12pt;">Na
primeira mocidade, somos colocados em face do destino que se vai
abrir diante de nós, como as crianças em frente do pano de um
teatro, na expectativa alegre e impaciente das coisas que vão
passar-se em cena; é uma felicidade não podermos saber nada de
antemão. Aos olhos daquele que sabe o que realmente se vai passar,
as crianças são inocentes culpados condenados não à morte mas à
vida, e que todavia não conhecem ainda o conteúdo da sua sentença.
— Nem por isso todos deixam de ter o desejo de chegar a uma idade
avançada, isto é, a um estado que se poderia exprimir deste modo:
"Hoje é mau, e cada dia o será mais — até que chegue o pior
de todos."</span></span></span></div>
<div class="western" style="line-height: 100%; margin-bottom: 0cm; text-align: left;">
<span><br />
</span></div>
<div class="western" style="line-height: 100%; margin-bottom: 0cm; text-align: left;">
<span><span face=""arial" , sans-serif" style="font-size: 16px;"> </span><span face=""arial" , sans-serif" style="font-size: 16px;"> </span><span face=""arial" , sans-serif"><span style="font-size: 12pt;">Quando
se representa, tanto quanto é possível fazê-lo de uma maneira
aproximada, a soma de miséria, de dor e de sofrimentos de todas as
espécies que o Sol ilumina no seu curso, deve-se concordar que
valeria muito mais que esse astro tivesse o mesmo poder na Terra para
fazer surgir o fenômeno da vida que tem na Lua, e seria preferível
que a superfície da Terra como a da Lua se mantivesse ainda no
estado de cristal.</span></span></span></div>
<div class="western" style="line-height: 100%; margin-bottom: 0cm; text-align: left;">
<span><span face=""arial" , sans-serif" style="font-size: 16px;"> </span><span face=""arial" , sans-serif" style="font-size: 16px;"> </span><span face=""arial" , sans-serif"><span style="font-size: 12pt;">Pode
ainda se considerar a nossa vida como um episódio que perturba
inutilmente a beatitude e o repouso do nada. Seja como for, aquele
para quem a existência é quase suportável, à medida que avança
em idade, tem uma consciência cada vez mais clara de que ela é em
todas as coisas um </span></span><span face=""arial" , sans-serif"><span style="font-size: 12pt;"><i>disappointment</i></span></span><span face=""arial" , sans-serif"><span style="font-size: 12pt;">,
</span></span><span face=""arial" , sans-serif"><span style="font-size: 12pt;"><i>nay</i></span></span><span face=""arial" , sans-serif"><span style="font-size: 12pt;">,
</span></span><span face=""arial" , sans-serif"><span style="font-size: 12pt;"><i>a
cheat</i></span></span><span face=""arial" , sans-serif"><span style="font-size: 12pt;">
[uma decepção, ou melhor uma fraude], em outros termos, que ela
possui o caráter de uma grande mistificação, para não dizer de um
logro...</span></span></span></div>
<div class="western" style="line-height: 100%; margin-bottom: 0cm; text-align: left;">
<span><span face=""arial" , sans-serif" style="font-size: 16px;"> </span><span face=""arial" , sans-serif" style="font-size: 16px;"> </span><span face=""arial" , sans-serif"><span style="font-size: 12pt;">Alguém
que tenha sobrevivido a duas ou três gerações encontra-se na mesma
disposição de espírito que um espectador que, sentado numa barraca
de saltimbancos na feira, vê as mesmas farsas repetidas duas ou três
vezes sem interrupção: é que as coisas estavam calculadas para uma
única representação e já não fazem nenhum efeito, uma vez
dissipadas a ilusão e a novidade.</span></span></span></div>
<div class="western" style="line-height: 100%; margin-bottom: 0cm; text-align: left;">
<span><span face=""arial" , sans-serif" style="font-size: 16px;"> </span><span face=""arial" , sans-serif" style="font-size: 16px;"> </span><span face=""arial" , sans-serif"><span style="font-size: 12pt;">Perder-se-ia
a cabeça, se se observasse a prodigalidade das disposições
tomadas, essas estrelas fixas que brilham inumeráveis no espaço
infinito, e não têm outro fim senão iluminar mundos, teatros da
miséria e dos gemidos, mundos que, no mais feliz dos casos, só
produzem o tédio: — pelo menos a apreciarmos a amostra que nos é
conhecida.</span></span></span></div>
<div class="western" style="line-height: 100%; margin-bottom: 0cm; text-align: left;">
<span><span face=""arial" , sans-serif" style="font-size: 16px;"> </span><span face=""arial" , sans-serif" style="font-size: 16px;"> </span><span face=""arial" , sans-serif"><span style="font-size: 12pt;">Ninguém
é verdadeiramente digno de inveja, e quantos são para lastimar!</span></span></span></div>
<div class="western" style="line-height: 100%; margin-bottom: 0cm; text-align: left;">
<span><span face=""arial" , sans-serif" style="font-size: 16px;"> </span><span face=""arial" , sans-serif" style="font-size: 16px;"> </span><span face=""arial" , sans-serif"><span style="font-size: 12pt;">A
vida é uma tarefa que devemos desempenhar laboriosamente; e neste
sentido, a palavra </span></span><span face=""arial" , sans-serif"><span style="font-size: 12pt;"><i>defunctus</i></span></span><span face=""arial" , sans-serif"><span style="font-size: 12pt;">
é uma bela expressão.</span></span></span></div>
<div class="western" style="line-height: 100%; margin-bottom: 0cm; text-align: left;">
<span><span face=""arial" , sans-serif" style="font-size: 16px;"> </span><span face=""arial" , sans-serif" style="font-size: 16px;"> </span><span face=""arial" , sans-serif"><span style="font-size: 12pt;">Imagine-se
por um instante que o ato da geração não era nem uma necessidade
nem uma voluptuosidade, mas um caso de pura reflexão e de razão: a
espécie humana subsistiria ainda? Não sentiriam todos bastante
piedade pela geração futura, para lhe poupar o peso da existência,
ou, pelo menos, não hesitariam em impor esse a ela a sangue frio?</span></span></span></div>
<div class="western" style="line-height: 100%; margin-bottom: 0cm; text-align: left;">
<span><span face=""arial" , sans-serif" style="font-size: 16px;"> </span><span face=""arial" , sans-serif" style="font-size: 16px;"> </span><span face=""arial" , sans-serif"><span style="font-size: 12pt;">O
mundo é o inferno, e os homens dividem-se em almas atormentadas e em
diabos atormentadores.</span></span></span></div>
<div class="western" style="line-height: 100%; margin-bottom: 0cm; text-align: left;">
<span><span face=""arial" , sans-serif" style="font-size: 16px;"> </span><span face=""arial" , sans-serif" style="font-size: 16px;"> </span><span face=""arial" , sans-serif"><span style="font-size: 12pt;">Certamente
ainda terei de ouvir dizer que a minha filosofia carece de consolação
— e isso simplesmente porque digo a verdade, enquanto todos gostam
de ouvir dizer: o Senhor Deus fez bem tudo quanto fez. Ide à igreja
e deixai os filósofos em paz. Pelo menos não exijam que eles
ajustem as suas doutrinas ao vosso catecismo: é o que fazem os
indigentes e os filosofastros: a esses podem-se encomendar doutrinas
ao gosto de cada um. Perturbar o otimismo obrigado dos professores de
filosofia é tão fácil como agradável.</span></span></span></div>
<div class="western" style="line-height: 100%; margin-bottom: 0cm; text-align: left;">
<span><span face=""arial" , sans-serif" style="font-size: 16px;"> </span><span face=""arial" , sans-serif" style="font-size: 16px;"> </span><span face=""arial" , sans-serif"><span style="font-size: 12pt;">Brama
produz o mundo por uma espécie de pecado ou desvario, e permanece
ele próprio no mundo para expiar esse pecado até estar redimido. —
Muito bem! — No Budismo, o mundo nasce em seguida a uma perturbação
inexplicável, que se produz após um longo repouso nessa claridade
do céu, nessa beatitude serena, chamada Nirvana, que será
reconquistada pela penitência; é como que uma espécie de
fatalidade que se deve compreender no fundo de um sentido moral,
ainda que essa explicação tenha uma analogia e uma imagem
exatamente correspondente na natureza pela formação inexplicável
do mundo primitivo, vasta nebulosa donde surgirá um sol. Mas os
erros morais tornam mesmo o mundo físico gradualmente pior e sempre
pior, até ter tomado a sua triste forma atual.</span></span></span></div>
<div class="western" style="line-height: 100%; margin-bottom: 0cm; text-align: left;">
<span><span face=""arial" , sans-serif" style="font-size: 16px;"> </span><span face=""arial" , sans-serif" style="font-size: 16px;"> </span><span face=""arial" , sans-serif"><span style="font-size: 12pt;">Para
os gregos, o mundo e os deuses eram a obra de uma necessidade
insondável. Esta explicação é suportável, porque nos satisfaz
provisoriamente. Ormuzd vive em guerra com Ahriman: — isto ainda se
pode admitir. — Mas um Deus como esse Jeová, que </span></span><span face=""arial" , sans-serif"><span style="font-size: 12pt;"><i>animi
causa</i></span></span><span face=""arial" , sans-serif"><span style="font-size: 12pt;">,
por seu bel-prazer e muito voluntariamente produz este mundo de
miséria e de lamentações, e que ainda se felicita e se aplaude, é
que é demasiado forte! Consideremos, portanto, nesse ponto de vista,
a religião dos judeus como a última entre as doutrinas religiosas
dos povos civilizados; o que concorda perfeitamente com o fato de ser
ela também a única que não tem absolutamente nenhum vestígio de
imortalidade.</span></span></span></div>
<div class="western" style="line-height: 100%; margin-bottom: 0cm; text-align: left;">
<span><span face=""arial" , sans-serif" style="font-size: 16px;"> </span><span face=""arial" , sans-serif" style="font-size: 16px;"> </span><span face=""arial" , sans-serif"><span style="font-size: 12pt;">Ainda
mesmo que a demonstração de Leibnitz fosse verdadeira, embora se
admitisse que entre os mundos possíveis este é sempre o melhor,
essa demonstração não daria ainda nenhuma teodiceia. Porque o
criador não só criou o mundo, mas também a própria possibilidade;
portanto, devia ter tornado possível um mundo melhor.</span></span></span></div>
<div class="western" style="line-height: 100%; margin-bottom: 0cm; text-align: left;">
<span><span face=""arial" , sans-serif" style="font-size: 16px;"> </span><span face=""arial" , sans-serif" style="font-size: 16px;"> </span><span face=""arial" , sans-serif"><span style="font-size: 12pt;">A
miséria, que alastra por este mundo, protesta demasiado alto contra
a hipótese de uma obra perfeita devida a um ser absolutamente sábio,
absolutamente bom, e também todo-poderoso; e, de outra parte, a
imperfeição evidente e mesmo a burlesca caricatura do mais acabado
dos fenômenos da criação, o homem, são de uma evidência
demasiado sensível. Há aí uma dissonância que não se pode
resolver. As dores e as misérias são, pelo contrário, outras
tantas provas em apoio, quando consideramos o mundo como a obra da
nossa própria culpa, e portanto como uma coisa que não podia ser
melhor. Ao passo que na primeira hipótese, a miséria do mundo se
torna uma acusação amarga contra o criador e dá margem aos
sarcasmos, no segundo caso aparece como uma acusação contra o nosso
ser e a nossa vontade, bem própria para nos humilhar.</span></span></span></div>
<div class="western" style="line-height: 100%; margin-bottom: 0cm; text-align: left;">
<span><span face=""arial" , sans-serif" style="font-size: 16px;"> </span><span face=""arial" , sans-serif" style="font-size: 16px;"> </span><span face=""arial" , sans-serif"><span style="font-size: 12pt;">Conduz-nos
a este profundo pensamento de que viemos ao mundo já viciados como
os filhos de pais gastos pelos desregramentos, e que, se a nossa
existência é de tal modo miserável, e tem por desenlace a morte, é
porque temos continuamente essa culpa a expiar. De um modo geral não
há nada mais certo: é a pesada culpa do mundo que causa os grandes
e inúmeros sofrimentos a que somos votados; e entendemos esta
relação no sentido metafísico e não no físico e empírico.
Assim, a história do pecado original reconcilia-me com o antigo
testamento; é mesmo a meus olhos a única verdade metafísica do
livro, embora aí se apresente sob o véu da alegoria. Porque a nossa
existência assemelha-se perfeitamente à consequência de uma
falta e de um desejo culpado...</span></span></span></div>
<div class="western" style="line-height: 100%; margin-bottom: 0cm; text-align: left;">
<span><span face=""arial" , sans-serif" style="font-size: 16px;"> </span><span face=""arial" , sans-serif" style="font-size: 16px;"> </span><span face=""arial" , sans-serif"><span style="font-size: 12pt;">Quereis
ter sempre ao alcance da mão uma bússola segura a fim de vos
orientar na vida e de a encarar incessantemente sob o seu verdadeiro
prisma. Habituai-vos a considerar este mundo como um lugar de
penitência, como uma colônia penitenciária, como lhe chamaram já
os mais antigos filósofos (</span></span><span face=""arial" , sans-serif"><span style="font-size: 12pt;"><i>Clem.
Alex. Strom</i></span></span><span face=""arial" , sans-serif"><span style="font-size: 12pt;">.
L. III, c. 3, p. 399) e alguns padres da Igreja. (Augustin. </span></span><span face=""arial" , sans-serif"><span style="font-size: 12pt;"><i>De
civit</i></span></span><span face=""arial" , sans-serif"><span style="font-size: 12pt;">.
Dei, L. XI, 23).</span></span></span></div>
<div class="western" style="line-height: 100%; margin-bottom: 0cm; text-align: left;">
<span><span face=""arial" , sans-serif" style="font-size: 16px;"> </span><span face=""arial" , sans-serif" style="font-size: 16px;"> </span><span face=""arial" , sans-serif"><span style="font-size: 12pt;">A
sabedoria de todos os tempos, o Bramanismo, o Budismo, Empédocles e
Pitágoras confirmaram este modo de ver; Cicero (</span></span><span face=""arial" , sans-serif"><span style="font-size: 12pt;"><i>Fragmenta
de philosophia</i></span></span><span face=""arial" , sans-serif"><span style="font-size: 12pt;">,
vol. 12, p. 316, ed. Bip.) conta que os sábios antigos na iniciação
dos mistérios ensinavam: </span></span><span face=""arial" , sans-serif"><span style="font-size: 12pt;"><i>nos
ob aliqua scelera sucepta in vita superiore, pœnarum luendarum
causa natos esse</i></span></span><span face=""arial" , sans-serif"><span style="font-size: 12pt;">
[Nascemos para cumprir a pena de alguns crimes cometidos em uma vida
anterior]. Vanini, que acharam mais cômodo queimar que refutar,
exprime essa ideia da maneira mais enérgica, quando diz: </span></span><span face=""arial" , sans-serif"><span style="font-size: 12pt;"><i>Tot,
tantisque homo repletus miseriis, ut si Christianæ religioni non
repugnaret: dicere auderem, si dcemones dantur, ipsi, in hominum
corpora transmigrantes, sceleris pænas luunt.</i></span></span><span face=""arial" , sans-serif"><span style="font-size: 12pt;">
[O homem está tão repleto de tantas misérias, que, se a religião
cristã não se opusesse, eu me atreveria a dizer: se existem
demônios, eles mesmos, ao passarem aos corpos dos homens, cumprem
penas.] (</span></span><span face=""arial" , sans-serif"><span style="font-size: 12pt;"><i>De
admirandis naturae arcanis</i></span></span><span face=""arial" , sans-serif"><span style="font-size: 12pt;">,
dial. L. p. 353.) Mas, mesmo no puro cristianismo bem compreendido, a
nossa existência é considerada como a consequência de uma falta,
de uma queda. Se nos familiarizarmos com esta ideia, não esperaremos
da vida senão o que ela pode nos dar, e longe de considerarmos as
suas contradições, sofrimentos, tormentos, misérias grandes ou
pequenas, como coisas inesperadas, contrárias às regras,
achá-l<span face=""arial" , sans-serif">a</span>s-emos perfeitamente naturais, sabendo bem que na Terra cada
um sofre a pena da sua existência, e cada um a seu modo. Entre os
males de um estabelecimento penitenciário, o menor não é a
sociedade que nele se encontra. O que a sociedade dos homens vale,
sabem-no aqueles que mereceriam outra melhor, sem que seja necessário
que eu o diga. Uma bela alma, um gênio, podem por vezes experimentar
aí os sentimentos de um nobre prisioneiro do Estado que se encontra
nas galés rodeado de celerados vulgares; e, como ele, procuram
isolar-se. Em geral, porém, esta ideia sobre o mundo torna-nos aptos
a ver sem surpresa, e ainda mais, sem indignação, o que se chamam
as imperfeições, isto é, a miserável constituição intelectual e
moral da maior parte dos homens, que a sua própria fisionomia nos
revela...</span></span></span></div>
<div class="western" style="line-height: 100%; margin-bottom: 0cm; text-align: left;">
<span><span face=""arial" , sans-serif" style="font-size: 16px;"> </span><span face=""arial" , sans-serif" style="font-size: 16px;"> </span><span face=""arial" , sans-serif"><span style="font-size: 12pt;">A
convicção de que o mundo e, por conseguinte, o homem são tais que
não deveriam existir é </span></span><span face=""arial" , sans-serif"><span style="font-size: 12pt;">apresentada
</span></span><span face=""arial" , sans-serif"><span style="font-size: 12pt;">de
mo</span></span><span face=""arial" , sans-serif"><span style="font-size: 12pt;">do</span></span><span face=""arial" , sans-serif"><span style="font-size: 12pt;">
que nos deve encher de indulgência uns pelos outros; que se pode
esperar, de fato, de uma tal espécie de seres? — Penso, às vezes,
que a maneira mais </span></span><span face=""arial" , sans-serif"><span style="font-size: 12pt;">conveniente</span></span><span face=""arial" , sans-serif"><span style="font-size: 12pt;">
</span></span><span face=""arial" , sans-serif"><span style="font-size: 12pt;">de
os</span></span><span face=""arial" , sans-serif"><span style="font-size: 12pt;">
homens se cumprimentarem em vez de ser Senhor, Sir etc, poderia ser:
“companheiro de sofrimentos, </span></span><span face=""arial" , sans-serif"><span style="font-size: 12pt;"><i>soc</i></span></span><span face=""arial" , sans-serif"><span style="font-size: 12pt;"><i>i</i></span></span><span face=""arial" , sans-serif"><span style="font-size: 12pt;"><i>
malorum</i></span></span><span face=""arial" , sans-serif"><span style="font-size: 12pt;">,
companheiro de miséria, </span></span><span face=""arial" , sans-serif"><span style="font-size: 12pt;"><i>my
fellow-sufferer</i></span></span><span face=""arial" , sans-serif"><span style="font-size: 12pt;">”.
Por muito original que isto pareça, a expressão é contudo fundada,
lança sobre o próximo a luz mais verdadeira, e lembra a necessidade
da tolerância, da paciência, da indulgência, do amor </span></span><span face=""arial" , sans-serif"><span style="font-size: 12pt;">a</span></span><span face=""arial" , sans-serif"><span style="font-size: 12pt;">o
próximo, sem o que ninguém pode passar, e de que, portanto, todos
são devedores. </span></span>
</span></div>
<div class="western" style="line-height: 100%; margin-bottom: 0cm; text-align: left;">
<span><br />
</span></div>
<div class="western" style="line-height: 100%; margin-bottom: 0cm; text-align: left;">
<span><span face=""arial" , sans-serif"><span style="font-size: 12pt;">Extraído de </span></span></span></div>
<div class="western" style="line-height: 100%; margin-bottom: 0cm; text-align: left;">
<span><span face=""arial" , sans-serif"><span style="font-size: 12pt;">SCHOPENHAUER,
Arthur. </span></span><span face=""arial" , sans-serif"><span style="font-size: 12pt;"><i>As
dores do mundo (p. 25-30)</i></span></span><span face=""arial" , sans-serif"><span style="font-size: 12pt;">.
São Paulo, EDIPRO, 2014. </span></span></span>
</div>
Sérgio Freitas Milan de Almeidahttp://www.blogger.com/profile/18218908588520138151noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-2109283952580855674.post-72172651408230242142015-01-14T08:06:00.001-02:002017-03-04T19:41:13.360-03:00Sobre importâncias - Manoel de BarrosUma rã se achava importante<br />
Porque o rio passava nas suas margens.<br />
O rio não teria grande importância para a rã<br />
Porque era o rio que estava ao pé dela.<br />
Pois Pois.<br />
Para um artista aquele ramo de luz sobre uma lata<br />
desterrada no canto de uma rua, talvez para um<br />
fotógrafo, aquele pingo de sol na lata seja mais<br />
importante do que o esplendor do sol nos oceanos.<br />
Pois Pois.<br />
Em Roma, o que mais me chamou atenção foi um<br />
prédio que ficava em frente das pombas.<br />
O prédio era de estilo bizantino do século IX.<br />
Colosso!<br />
Mas eu achei as pombas mais importantes do que o<br />
prédio.<br />
Agora, hoje, eu vi um sabiá pousado na Cordilheira<br />
dos Andes.<br />
Achei o sabiá mais importante do que a Cordilheira<br />
dos Andes.<br />
O pessoal falou: seu olhar é distorcido.<br />
Eu, por certo, não saberei medir a importância das<br />
coisas: alguém sabe?<br />
Eu só queria construir nadeiras para botar nas<br />
minhas palavras.<br />
<br />
Manoel de Barros, <b>in </b><i>Tratado geral das grandezas do ínfimo</i> (2001).Sérgio Freitas Milan de Almeidahttp://www.blogger.com/profile/18218908588520138151noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-2109283952580855674.post-80652260641997978472014-04-23T22:08:00.002-03:002014-04-23T22:08:25.537-03:00Nem sou uma pessoa sem ninguém dentro - Manoel de BarrosSobre meu corpo se deitou a noite (como se<br />
eu fosse um lugar de paina).<br />
Mas eu não sou um lugar de paina.<br />
Quando muito um lugar de espinhos.<br />
Talvez um terreno baldio com insetos dentro.<br />
Na verdade eu nem tenho ainda o sossego de<br />
uma pedra.<br />
Não tenho os predicados de uma lata.<br />
Nem sou uma pessoa sem ninguém dentro <span style="font-family: Calibri, sans-serif; font-size: 11pt; line-height: 115%;">–</span><br />
feito um osso de gado<br />
Ou um pé de sapato jogado no beco.<br />
Não consegui ainda a solidão de um caixote <span style="font-family: Calibri, sans-serif; font-size: 11pt; line-height: 115%;">– </span><br />
tipo aquele engradado de madeira que o poeta<br />
Francis Ponge fez dele um objeto de poesia.<br />
Não sou sequer uma tapera, Senhor.<br />
Não sou um traste que se preze.<br />
Eu não sou digno de receber no meu corpo os<br />
orvalhos da manhã.<br />
<br />
Manoel de Barros, <b>in </b><i>Retrato do artista quando coisa</i>, 1998.Sérgio Freitas Milan de Almeidahttp://www.blogger.com/profile/18218908588520138151noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-2109283952580855674.post-55473211801635850092013-12-26T14:49:00.001-02:002013-12-26T14:49:53.937-02:00O guardador de rebanhos - Fernando Pessoa (Alberto Caeiro)I<br />
<br />
Eu nunca guardei rebanhos,<br />
Mas é como se os guardasse.<br />
Minha alma é como um pastor,<br />
Conhece o vento e o sol<br />
E anda pela mão das Estações<br />
A seguir e a olhar.<br />
Toda a paz da Natureza sem gente<br />
Vem sentar-se a meu lado.<br />
Mas eu fico triste como um pôr de sol<br />
Para a nossa imaginação,<br />
Quando esfria no fundo da planície<br />
E se sente a noite entrada<br />
Como uma borboleta pela janela.<br />
<br />
Mas a minha tristeza é sossego<br />
Porque é natural e justa<br />
E é o que deve estar na alma<br />
Quando já pensa que existe<br />
E as mãos colhem flores sem ela dar por isso.<br />
<br />
Como um ruído de chocalhos<br />
Para além da curva da estrada,<br />
Os meus pensamentos são contentes.<br />
Só tenho pena de saber que eles são contentes,<br />
Porque, se o não soubesse,<br />
Em vez de serem contentes e tristes,<br />
Seriam alegres e contentes.<br />
<br />
Pensar incomoda como andar à chuva<br />
Quando o vento cresce e parece que chove mais.<br />
<br />
Não tenho ambições nem desejos<br />
Ser poeta não é uma ambição minha<br />
É a minha maneira de estar sozinho.<br />
<br />
E se desejo às vezes<br />
Por imaginar, ser cordeirinho<br />
(Ou ser o rebanho todo<br />
Para andar espalhado por toda a encosta<br />
A ser muita cousa feliz ao mesmo tempo),<br />
É só porque sinto o que escrevo ao pôr do sol,<br />
Ou quando uma nuvem passa a mão por cima da luz<br />
E corre um silêncio pela erva fora.<br />
Quando me sento a escrever versos<br />
Ou, passeando pelos caminhos ou pelos atalhos,<br />
Escrevo versos num papel que está no meu pensamento,<br />
Sinto um cajado nas mãos<br />
E vejo um recorte de mim<br />
No cimo dum outeiro,<br />
Olhando para o meu rebanho e vendo as minhas idéias,<br />
Ou olhando para as minhas idéias e vendo o meu rebanho,<br />
E sorrindo vagamente como quem não compreende o que se diz<br />
E quer fingir que compreende.<br />
<br />
Saúdo todos os que me lerem,<br />
Tirando-lhes o chapéu largo<br />
Quando me vêem à minha porta<br />
Mal a diligência levanta no cimo do outeiro.<br />
Saúdo-os e desejo-lhes sol,<br />
E chuva, quando a chuva é precisa,<br />
E que as suas casas tenham<br />
Ao pé duma janela aberta<br />
Uma cadeira predileta<br />
Onde se sentem, lendo os meus versos.<br />
E ao lerem os meus versos pensem<br />
Que sou qualquer coisa natural —<br />
Por exemplo, a árvore antiga<br />
À sombra da qual quando crianças<br />
Se sentavam com um baque, cansados de brincar,<br />
E limpavam o suor da testa quente<br />
Com a manga do bibe riscado.<br />
...<br />
<div>
<br /></div>
Sérgio Freitas Milan de Almeidahttp://www.blogger.com/profile/18218908588520138151noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-2109283952580855674.post-26964943460960427222013-12-22T14:46:00.000-02:002013-12-22T14:46:10.938-02:00Poema dos dons / Poema de los dones - Jorge Luis Borges<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgCx4Cd3sscre2N9ca1rGSD09Osf_hYzwEJcsu2QV6ZmAIZGQrEbMiUwhO1coQh0LanOtV4FmXCccoOKx9aOpsjqb-4oveVwgXnCGoZhrnHWJMqIhKusSX8J3aP5CE0YRbkJyRY35rq2Ao/s1600/images.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgCx4Cd3sscre2N9ca1rGSD09Osf_hYzwEJcsu2QV6ZmAIZGQrEbMiUwhO1coQh0LanOtV4FmXCccoOKx9aOpsjqb-4oveVwgXnCGoZhrnHWJMqIhKusSX8J3aP5CE0YRbkJyRY35rq2Ao/s1600/images.jpg" /></a></div>
<br />
Ninguém rebaixe a lágrima ou rejeite<br />
Esta declaração da maestria<br />
De Deus, que com magnífica ironia<br />
Deu-me a um só tempo os livros e a noite.<br />
<br />
Da cidade de livros tornou donos<br />
Estes olhos sem luz, que só concedem<br />
Em ler entre as bibliotecas dos sonhos<br />
Insensatos parágrafos que cedem<br />
<br />
As alvas a seu afã. Em vão o dia<br />
Lhes prodiga seus livros infinitos,<br />
Árduos como os árduos manuscritos<br />
Que pereceram em Alexandria.<br />
<br />
De fome e de sede (narra uma história grega)<br />
Morre um rei entre fontes e jardins;<br />
Eu fatigo sem rumo os confins<br />
Dessa alta e funda biblioteca cega.<br />
<br />
Enciclopédias, atlas, o Oriente<br />
E o Ocidente, centúrias, dinastias,<br />
Símbolos, cosmos e cosmogonias<br />
Brindam os muros, mas inutilmente.<br />
<br />
Em minha sombra, o oco breu com desvelo<br />
Investigo, o báculo indeciso,<br />
Eu, que me figurava o Paraíso<br />
Tendo uma biblioteca como modelo.<br />
<br />
Algo, que por certo não se vislumbra<br />
No termo <i>acaso</i>, rege estas coisas;<br />
Outro já recebeu em outras nebulosas<br />
Tardes os muitos livros e a penumbra.<br />
<br />
Ao errar pelas lentas galerias<br />
Sinto às vezes com vago horror sagrado<br />
Que sou o outro, o morto, habituado<br />
Aos mesmos passos e nos mesmos dias.<br />
<br />
Qual de nós dois escreve este poema<br />
De uma só sombra e de um eu plural?<br />
O nome que me assina é essencial,<br />
Se é indiviso e uno esse anátema?<br />
<br />
Groussac <span style="font-size: x-small;">[1]</span> ou Borges, olho este querido<br />
Mundo que se deforma e que se apaga<br />
Numa empalidecida cinza vaga<br />
Que se parece ao sonho e ao olvido.<br />
<br />
<br />
<div class="MsoNormal">
<span lang="ES-AR" style="font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: ES-AR; mso-bidi-font-size: 10.0pt;">POEMA DE LOS DONES<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span lang="ES-AR" style="font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: ES-AR; mso-bidi-font-size: 10.0pt;">
</span><span lang="ES-AR" style="font-size: 9.0pt; mso-ansi-language: ES-AR; mso-bidi-font-size: 10.0pt;">Jorge Luis Borges<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<span lang="ES-AR" style="font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: ES-AR; mso-bidi-font-size: 10.0pt;">Nadie rebaje a lágrima o reproche<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span lang="ES-AR" style="font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: ES-AR; mso-bidi-font-size: 10.0pt;">Esta declaración de la maestria<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 11.0pt; mso-bidi-font-size: 10.0pt;">De
Dios, que com magnífica ironia<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span lang="ES-AR" style="font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: ES-AR; mso-bidi-font-size: 10.0pt;">Me dio a la vez los libros y la noche.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<span lang="ES-AR" style="font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: ES-AR; mso-bidi-font-size: 10.0pt;">De esta ciudad de libros hizo dueños<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span lang="ES-AR" style="font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: ES-AR; mso-bidi-font-size: 10.0pt;">A unos ojos sin luz, que sólo pueden<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span lang="ES-AR" style="font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: ES-AR; mso-bidi-font-size: 10.0pt;">Leer en las bibliotecas de los sueños<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span lang="ES-AR" style="font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: ES-AR; mso-bidi-font-size: 10.0pt;">Los insensatos párrafos que ceden<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<span lang="ES-AR" style="font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: ES-AR; mso-bidi-font-size: 10.0pt;">Las albas a su afán. En vano el día<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span lang="ES-AR" style="font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: ES-AR; mso-bidi-font-size: 10.0pt;">Les prodiga sus libros infinitos,<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span lang="ES-AR" style="font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: ES-AR; mso-bidi-font-size: 10.0pt;">Arduos como los arduos manuscritos<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span lang="ES-AR" style="font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: ES-AR; mso-bidi-font-size: 10.0pt;">Que perecieron en Alejandría.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<span lang="ES-AR" style="font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: ES-AR; mso-bidi-font-size: 10.0pt;">De hambre y de sed (narra una historia griega)<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span lang="ES-AR" style="font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: ES-AR; mso-bidi-font-size: 10.0pt;">Muere un rey entre fuentes y jardines;<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span lang="ES-AR" style="font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: ES-AR; mso-bidi-font-size: 10.0pt;">Yo fatigo sin rumbo los confines<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span lang="ES-AR" style="font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: ES-AR; mso-bidi-font-size: 10.0pt;">De esta alta y honda biblioteca ciega.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<span lang="ES-AR" style="font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: ES-AR; mso-bidi-font-size: 10.0pt;">Enciclopedias, atlas, el Oriente<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span lang="ES-AR" style="font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: ES-AR; mso-bidi-font-size: 10.0pt;">Y el Ocidente, siglos, dinastias,<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span lang="ES-AR" style="font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: ES-AR; mso-bidi-font-size: 10.0pt;">Símbolos, cosmos y cosmogonías<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span lang="ES-AR" style="font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: ES-AR; mso-bidi-font-size: 10.0pt;">Brindan los muros, pero inutilmente.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<span lang="ES-AR" style="font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: ES-AR; mso-bidi-font-size: 10.0pt;">Lento en mi sombra, la penumbra hueca<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 11.0pt; mso-bidi-font-size: 10.0pt;">Exploro
com el báculo indeciso,<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span lang="ES-AR" style="font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: ES-AR; mso-bidi-font-size: 10.0pt;">Yo, que me figuraba el Paraíso<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span lang="ES-AR" style="font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: ES-AR; mso-bidi-font-size: 10.0pt;">Bajo la especie de una biblioteca.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<span lang="ES-AR" style="font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: ES-AR; mso-bidi-font-size: 10.0pt;">Algo, que ciertamente no se nombra<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span lang="ES-AR" style="font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: ES-AR; mso-bidi-font-size: 10.0pt;">Com la palabra <i>azar</i>, rige estas cosas;<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span lang="ES-AR" style="font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: ES-AR; mso-bidi-font-size: 10.0pt;">Outro ya recibió en otras borrosas<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span lang="ES-AR" style="font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: ES-AR; mso-bidi-font-size: 10.0pt;">Tardes los muchos libros y la sombra.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<span lang="ES-AR" style="font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: ES-AR; mso-bidi-font-size: 10.0pt;">Al errar por las lentas galerías<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 11.0pt; mso-bidi-font-size: 10.0pt;">Suelo
sentir com vago horror sagrado<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span lang="ES-AR" style="font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: ES-AR; mso-bidi-font-size: 10.0pt;">Que soy el outro, el muerto, que habrá dado<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span lang="ES-AR" style="font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: ES-AR; mso-bidi-font-size: 10.0pt;">Los mismos pasos en los mismos días.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<span lang="ES-AR" style="font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: ES-AR; mso-bidi-font-size: 10.0pt;">Cual de los dos escribe este poema<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span lang="ES-AR" style="font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: ES-AR; mso-bidi-font-size: 10.0pt;">De uno yo plural y de una sola sombra?<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span lang="ES-AR" style="font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: ES-AR; mso-bidi-font-size: 10.0pt;">Qué importa la palabra que me nombra<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span lang="ES-AR" style="font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: ES-AR; mso-bidi-font-size: 10.0pt;">Si es indiviso y uno el anatema?<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 11.0pt; mso-bidi-font-size: 10.0pt;">Groussac</span><span style="font-size: x-small;"> [1]</span><span style="font-size: 11.0pt; mso-bidi-font-size: 10.0pt;"> o Borges, miro este querido<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span lang="ES-AR" style="font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: ES-AR; mso-bidi-font-size: 10.0pt;">Mundo que se deforma y que se apaga<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span lang="ES-AR" style="font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: ES-AR; mso-bidi-font-size: 10.0pt;"><span style="font-family: inherit;">En una pálid<span style="font-family: inherit;">a ceniza vaga</span><o:p></o:p></span></span></div>
<span lang="ES-AR"><span style="font-family: inherit;">Que se parece al sueño y al olvido.</span></span><br />
<span lang="ES-AR" style="font-family: "Garamond","serif"; font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: ES-AR; mso-bidi-font-family: "Times New Roman"; mso-bidi-font-size: 10.0pt; mso-bidi-language: AR-SA; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;"><br /></span>
<div style="text-align: right;">
<span lang="ES-AR" style="font-family: "Garamond","serif"; font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: ES-AR; mso-bidi-font-family: "Times New Roman"; mso-bidi-font-size: 10.0pt; mso-bidi-language: AR-SA; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Jorge Luis Borges, <i>in </i>“O fazedor” (1960)</span></div>
<div>
<br /></div>
<div>
[1] Paul Groussac também foi diretor da Biblioteca Nacional da Argentina. Também era cego como Borges.</div>
Sérgio Freitas Milan de Almeidahttp://www.blogger.com/profile/18218908588520138151noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-2109283952580855674.post-57737261521878576782013-12-18T08:42:00.000-02:002013-12-18T08:42:13.814-02:00Arte poética - Jorge Luis BorgesMirar el río hecho de tiempo y agua<br />
y recordar que el tiempo es otro río,<br />
saber que nos perdemos como el río<br />
y que los rostros pasan como el agua.<br />
<br />
Sentir que la vigilia es otro sueño<br />
que sueña no soñar y que la muerte<br />
que teme nuestra carne es esa muerte<br />
de cada noche, que se llama sueño.<br />
<br />
Ver en el día o en el año un símbolo<br />
de los días del hombre y de sus años,<br />
convertir el ultraje de los años<br />
en una música, un rumor y un símbolo,<br />
<br />
ver en la muerte el sueño, en el ocaso<br />
un triste oro, tal es la poesía<br />
que es inmortal y pobre. La poesía<br />
vuelve como la aurora y el ocaso.<br />
<br />
A veces en las tardes una cara<br />
nos mira desde el fondo de un espejo;<br />
el arte debe ser como ese espejo<br />
que nos revela nuestra propia cara.<br />
<br />
Cuentan que Ulises, harto de prodigios,<br />
lloró de amor al divisar su Itaca<br />
verde y humilde. El arte es esa Itaca<br />
de verde eternidad, no de prodigios.<br />
<br />
También es como el río interminable<br />
que pasa y queda y es cristal de un mismo<br />
Heráclito inconstante, que es el mismo<br />
y es otro, como el río interminable.<br />
<br />
Jorge Luis Borges, <b>in <i>El hacedor</i></b>, 1960Sérgio Freitas Milan de Almeidahttp://www.blogger.com/profile/18218908588520138151noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-2109283952580855674.post-88330316036663419012013-12-11T22:31:00.000-02:002013-12-11T22:31:18.773-02:00O jardim de veredas que se bifurcam - Jorge Luis Borges<div class="MsoSubtitle" style="text-align: right;">
<span style="font-size: 11.0pt; mso-bidi-font-size: 10.0pt;"> <i> A Victoria Ocampo</i><o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="mso-pagination: none; text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoBodyText2">
<span style="font-size: 12.0pt;"> Na página 22 da <i>História da Guerra da Europa</i>, de Liddell Hart, lê-se que uma
ofensiva de treze divisões britânicas (apoiadas por mil e quatrocentas peças de
artilharia) contra a linha Serre-Montauban tinha sido planeada para o dia vinte
e quatro de julho de 1916 e teve de se adiar para a manhã do dia vinte e nove.
Foram as chuvas torrenciais (anota o capitão Liddell Hart) que provocaram esse
atraso </span><span style="font-family: Symbol; font-size: 12.0pt; mso-ascii-font-family: "Times New Roman"; mso-char-type: symbol; mso-hansi-font-family: "Times New Roman"; mso-symbol-font-family: Symbol;">-</span><span style="font-size: 12.0pt;"> nada significativo,
certamente. A declaração seguinte, ditada, revista e assinada pelo doutor Yu
Tsun, antigo catedrático de inglês na <i>Hochschule</i>
de Tsingtao, lança uma insuspeitada luz sobre o caso. Faltam as duas páginas
iniciais:<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoBodyText3">
<span style="font-size: 12.0pt;"> “... e pendurei o fone. Imediatamente
após, reconheci a voz que respondera em alemão. Era a do capitão Richard
Madden. Madden, no apartamento de Viktor Runeberg, significava o fim das nossas
ansiedades e </span><span style="font-family: Symbol; font-size: 12.0pt; mso-ascii-font-family: "Times New Roman"; mso-char-type: symbol; mso-hansi-font-family: "Times New Roman"; mso-symbol-font-family: Symbol;">-</span><span style="font-size: 12.0pt;"> mas isto parecia muito secundário, ou <i>devia parecer-me</i> </span><span style="font-family: Symbol; font-size: 12.0pt; mso-ascii-font-family: "Times New Roman"; mso-char-type: symbol; mso-hansi-font-family: "Times New Roman"; mso-symbol-font-family: Symbol;">-</span><span style="font-size: 12.0pt;"> também das nossas vidas. Queria dizer que Runeberg fora preso, ou
assassinado (1). Antes que se pusesse o sol desse dia, eu incorreria na mesma
sorte. Madden era implacável. Melhor dizendo, era obrigado a ser implacável.
Irlandês às ordens da Inglaterra, homem acusado de moleza e talvez até de
traição, como não iria abraçar e agradecer este milagroso favor: a descoberta,
a captura e quiçá a morte, de dois agentes do Império Alemão? Subi ao meu
quarto; absurdamente fechei a porta à chave e deitei-me de costas na estreita
cama de ferro. Na janela viam-se os telhados de sempre e o sol nublado das
seis. Pareceu-me incrível que esse dia sem premonições nem símbolos fosse o da
minha morte implacável. Apesar de ter morrido o meu pai, apesar de eu ter
passado a infância num simétrico jardim de Hai Feng, ia morrer agora? Depois
refleti que todas as coisas sucedem a uma pessoa precisamente <i>agora</i>. Passam séculos e séculos e só no
presente acontecem os fatos; há inúmeros homens no ar, na terra e no mar, e
tudo o que realmente sucede, sucede a mim... A quase intolerável lembrança do
rosto cavalar de Madden aboliu estas divagações. Em meio a meu ódio e meu
terror (agora não me interessa falar de terror: agora que enganei Richard
Madden, agora que a minha garganta anseia pela corda) pensei que esse guerreiro
tumultuoso e sem dúvida feliz não suspeitava que eu possuía o Segredo. O nome
do lugar preciso do novo parque de artilharia britânico sobre o Ancre. Uma ave
rasgou o céu pardo e cegamente traduzi-o por um aeroplano e esse aeroplano por
muitos (no céu francês) aniquilando o parque de artilharia com bombas
verticais. Se minha boca, antes que a desfizesse uma bala, pudesse gritar o
nome de modo que o ouvissem na Alemanha... Minha voz humana era muito fraca.
Como fazê-la chegar ao ouvido do Chefe? Ao ouvido daquele homem doente e
odioso, que de Runeberg e de mim só sabia que estávamos em Staffordshire e que
em vão esperava notícias nossas no seu árido gabinete de Berlim, a examinar
infinitamente os jornais... Disse em voz alta: ‘Devo fugir’. Levantei-me sem
ruído, numa inútil perfeição de silêncio, como se já estivesse sob a mira de
Madden. Uma coisa </span><span style="font-family: Symbol; font-size: 12.0pt; mso-ascii-font-family: "Times New Roman"; mso-char-type: symbol; mso-hansi-font-family: "Times New Roman"; mso-symbol-font-family: Symbol;">-</span><span style="font-size: 12.0pt;"> talvez a simples ostentação de provar que os meus recursos eram nulos </span><span style="font-family: Symbol; font-size: 12.0pt; mso-ascii-font-family: "Times New Roman"; mso-char-type: symbol; mso-hansi-font-family: "Times New Roman"; mso-symbol-font-family: Symbol;">-</span><span style="font-size: 12.0pt;"> fez-me revistar os bolsos. Encontrei o que sabia que
iria encontrar. O relógio norte-americano, a corrente de níquel e a moeda
quadrangular, o chaveiro com as comprometedoras chaves inúteis do apartamento
de Runeberg, a caderneta, uma carta que resolvi destruir imediatamente (e que
não destruí), o passaporte falso, uma coroa, dois xelins e alguns <i>pennies</i>, o lápis azul-vermelho, o lenço,
o revólver com uma bala. Absurdamente o empunhei e sopesei para me dar coragem.
Pensei vagamente que um tiro se pode ouvir muito longe. Em dez minutos o meu
plano amadureceu. A lista telefônica deu-me o nome da única pessoa capaz de
transmitir a notícia: vivia num subúrbio de Fenton, a menos de meia hora de
trem.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="mso-pagination: none; text-align: justify;">
<span style="font-size: 12.0pt;"> “Sou
um homem covarde. Agora o digo, agora que levei a bom termo um plano que
ninguém deixará de qualificar de arriscado. Sei que foi terrível a sua
execução. Não o fiz pela Alemanha, não. Nada me importa um país bárbaro que me
obrigou à abjeção de me tornar espião. Além disso, sei de um homem da
Inglaterra </span><span style="font-family: Symbol; font-size: 12.0pt; mso-ascii-font-family: "Times New Roman"; mso-char-type: symbol; mso-hansi-font-family: "Times New Roman"; mso-symbol-font-family: Symbol;">-</span><span style="font-size: 12.0pt;"> um homem modesto </span><span style="font-family: Symbol; font-size: 12.0pt; mso-ascii-font-family: "Times New Roman"; mso-char-type: symbol; mso-hansi-font-family: "Times New Roman"; mso-symbol-font-family: Symbol;">-</span><span style="font-size: 12.0pt;"> que para mim não é menos que Goethe. Não falei com
ele mais de uma hora, mas durante uma hora foi Goethe... Fi-lo porque sentia
que o Chefe tinha pouca consideração pela gente da minha raça </span><span style="font-family: Symbol; font-size: 12.0pt; mso-ascii-font-family: "Times New Roman"; mso-char-type: symbol; mso-hansi-font-family: "Times New Roman"; mso-symbol-font-family: Symbol;">-</span><span style="font-size: 12.0pt;"> pelos inumeráveis antepassados que em mim confluem.
Queria provar-lhe que um amarelo podia salvar os seus exércitos. Além disso,
tinha de fugir do capitão. As suas mãos e a sua voz podiam bater à minha porta
a qualquer momento. Vesti-me sem ruído, disse-me adeus no espelho, desci,
esquadrinhei a rua tranquila e saí. A estação não ficava muito longe da casa, mas
achei preferível apanhar um carro. Argumentei que assim corria menos perigo de
ser reconhecido; o fato é que na rua deserta me sentia visível e vulnerável,
infinitamente. Lembro-me de ter dito ao motorista que parasse um pouco antes da
entrada principal. Saí do carro com lentidão voluntária e quase penosa; ia à
aldeia de Ashgrove, mas tirei bilhete para uma estação mais longe. O trem saía
daí a pouquíssimos minutos, às oito e cinqüenta. Apressei-me; o seguinte
partiria às nove e meia. Não havia quase ninguém na plataforma. Percorri os
vagões: lembro-me de uns lavradores, uma mulher de luto, um jovem que lia com
fervor os <i>Anais</i> de Tácito, um soldado
ferido e feliz. O trem, finalmente, partiu. Um homem que reconheci correu em
vão até o limite da plataforma. Era o capitão Richard Madden. Aniquilado,
trêmulo, encolhi-me na outra ponta do banco, longe do temido vidro da janela.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoBodyText3">
<span style="font-size: 12.0pt;"> “Dessa aniquilação passei a uma
felicidade quase abjeta. Disse para comigo que já estava metido no duelo e que
ganhara o primeiro assalto, ao enganar, nem que fosse por quarenta minutos, nem
que fosse por um favor do acaso, o ataque do meu adversário. Argumentei que
essa vitória mínima anunciava a vitória total. Concluí que não era mínima, dado
que sem essa diferença preciosa que o horário dos comboios me oferecia, eu
estaria na prisão, ou morto. Argumentei (de modo não menos sofístico) que a
minha covarde felicidade provava que eu era homem capaz de levar a aventura a
bom termo. Desta fraqueza tirei forças que não me abandonaram. Prevejo que o
homem se há de resignar dia a dia a tarefas cada vez mais atrozes; em breve não
haverá senão guerreiros e bandidos; dou-lhes este conselho: ‘O executor de uma
empresa atroz tem de imaginar que já a cumpriu, tem de se impor um futuro que
seja irrevogável como o passado’. Assim procedi eu, enquanto os meus olhos de
homem já morto registavam o fluir daquele dia que era talvez o último, e a
noite a espalhar-se. O trem corria com doçura, por entre freixos. Parou, quase
no meio do campo. Ninguém gritou o nome da estação. ‘Ashgrove?’ perguntei a uns
rapazinhos na plataforma. ‘Ashgrove’, responderam. Desci.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoBodyText3">
<span style="font-size: 12.0pt;"> “Uma lâmpada iluminava a plataforma,
mas os rostos dos meninos ficavam na zona de sombra. Um me perguntou: ‘O senhor
vai à casa do doutor Stephen Albert?’ Sem esperar por resposta, outro disse: ‘A
casa fica longe daqui, mas o senhor não se perde se for por esse caminho à
esquerda e em cada encruzilhada do caminho virar à esquerda’. Atirei-lhes uma
moeda (a última), desci uns degraus de pedra e entrei no solitário caminho.
Este, lentamente, era a descer. Era de terra elementar, por cima dele
juntavam-se os ramos, e a lua baixa e circular parecia acompanhar-me.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="mso-pagination: none; text-align: justify;">
<span style="font-size: 12.0pt;"> “Por um
instante, pensei que Richard Madden tinha de qualquer modo penetrado no meu
desesperado desígnio. Em breve compreendi que era impossível. O conselho de
virar sempre à esquerda fez-me lembrar que tal era o procedimento comum para
descobrir o pátio central de certos labirintos. Alguma coisa entendo de
labirintos: não é em vão que sou bisneto daquele Tsui Pên que foi governador de
Yunan e que renunciou ao poder temporal para escrever um romance que fosse
ainda mais populoso que o <i>Hung Lu Meng</i>
e para edificar um labirinto em que se perdessem todos os homens. Treze anos
dedicou a estes heterogêneos esforços, mas a mão de um forasteiro assassinou-o
e o seu romance não fazia sentido e ninguém encontrou o labirinto. Foi debaixo
de árvores inglesas que meditei nesse labirinto perdido: imaginei-o inviolado e
perfeito no cume secreto de uma montanha, imaginei-o apagado por arrozais ou
debaixo da água, imaginei-o infinito, não já de quiosques oitavados e de
caminhos em voltas, mas de rios e províncias e reinos... Pensei num labirinto
de labirintos, num sinuoso labirinto crescente que abrangesse o passado e o
porvir e que envolvesse de algum modo os astros. Absorto nestas ilusórias
imagens, esqueci do meu destino de perseguido. Senti-me, por um tempo
indeterminado, conhecedor abstrato do mundo. O vago e vivo campo, a Lua, os
restos da tarde, agiram sobre mim; igualmente o declive que eliminava qualquer
possibilidade de cansaço. A tarde estava íntima, infinita. O caminho descia e
bifurcava-se, por entre os prados já confusos. Uma música aguda e como que
silábica aproximava-se e afastava-se no vaivém do vento, enfraquecida pelas
folhas e pela distância. Pensei que um homem pode ser inimigo de outros homens,
de outros momentos de outros homens, mas não de um país: não de vaga-lumes,
palavras, jardins, cursos de água, poentes. Cheguei assim a um alto portão
enferrujado. Por entre as grades decifrei uma alameda e uma espécie de
pavilhão. Compreendi logo duas coisas, a primeira trivial, a segunda quase
incrível: a música vinha do pavilhão, e a música era chinesa. Por isso, eu
aceitara-a plenamente, sem lhe prestar atenção. Não me lembro se havia uma
sineta ou uma campainha ou se chamei batendo palmas. A contínua crepitação da
música prosseguiu. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="mso-pagination: none; text-align: justify;">
<span style="font-size: 12.0pt;"> “Mas
do fundo da íntima casa uma lanterna aproximava-se: uma lanterna que os troncos
riscavam e às vezes anulavam, uma lanterna de papel, que tinha a forma dos
tambores e a cor da Lua. Trazia-a um homem alto. Não lhe vi o rosto, porque a
luz me cegava. Abriu o portão e disse lentamente em meu idioma:<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="mso-pagination: none; text-align: justify;">
<span style="font-size: 12.0pt;"> “</span><span style="font-family: Symbol; font-size: 12.0pt; mso-ascii-font-family: "Times New Roman"; mso-char-type: symbol; mso-hansi-font-family: "Times New Roman"; mso-symbol-font-family: Symbol;">-</span><span style="font-size: 12.0pt;"> Vejo que o piedoso Hsi Pêng se empenha em atenuar a
minha solidão. Sem dúvida o senhor desejará ver o jardim?<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="mso-pagination: none; text-align: justify;">
<span style="font-size: 12.0pt;">
“Reconheci o nome de um dos nossos cônsules e repeti desconcertado:<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="mso-pagination: none; text-align: justify;">
<span style="font-size: 12.0pt;"> “</span><span style="font-family: Symbol; font-size: 12.0pt; mso-ascii-font-family: "Times New Roman"; mso-char-type: symbol; mso-hansi-font-family: "Times New Roman"; mso-symbol-font-family: Symbol;">-</span><span style="font-size: 12.0pt;"> O jardim?<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="mso-pagination: none; text-align: justify;">
<span style="font-size: 12.0pt;"> “</span><span style="font-family: Symbol; font-size: 12.0pt; mso-ascii-font-family: "Times New Roman"; mso-char-type: symbol; mso-hansi-font-family: "Times New Roman"; mso-symbol-font-family: Symbol;">-</span><span style="font-size: 12.0pt;"> O jardim dos caminhos que se bifurcam.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="mso-pagination: none; text-align: justify;">
<span style="font-size: 12.0pt;"> “Algo
se agitou na minha memória e pronunciei com incompreensível segurança:<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="mso-pagination: none; text-align: justify;">
<span style="font-size: 12.0pt;"> “</span><span style="font-family: Symbol; font-size: 12.0pt; mso-ascii-font-family: "Times New Roman"; mso-char-type: symbol; mso-hansi-font-family: "Times New Roman"; mso-symbol-font-family: Symbol;">-</span><span style="font-size: 12.0pt;"> O jardim do meu antepassado Tsui Pên.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="mso-pagination: none; text-align: justify;">
<span style="font-size: 12.0pt;"> “</span><span style="font-family: Symbol; font-size: 12.0pt; mso-ascii-font-family: "Times New Roman"; mso-char-type: symbol; mso-hansi-font-family: "Times New Roman"; mso-symbol-font-family: Symbol;">-</span><span style="font-size: 12.0pt;"> Seu antepassado? Seu ilustre antepassado? Entre.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="mso-pagination: none; text-align: justify;">
<span style="font-size: 12.0pt;"> “O
úmido caminho ziguezagueava como os da minha infância. Chegamos a uma biblioteca
de livros orientais e ocidentais. Reconheci, encadernados em seda amarela,
alguns tomos manuscritos da Enciclopédia Perdida que dirigiu o Terceiro
Imperador da Dinastia Luminosa e que nunca foi dada ao prelo. O disco do
gramofone rodava junto de uma fênix de bronze. Lembro-me também de um vaso <i>famille rose</i> e de outro, anterior de
muitos séculos, dessa cor azul que os nossos artífices copiaram dos oleiros da
Pérsia...<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="mso-pagination: none; text-align: justify;">
<span style="font-size: 12.0pt;">
“Stephen Albert observava-me, sorridente. Era (já o disse) muito alto,
de feições afiladas, de olhos cinzentos e barba grisalha. Havia nele algo de
sacerdote e também de marinheiro; depois contou-me que fora missionário em
Tientsin ‘antes de aspirar a sinólogo’.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="mso-pagination: none; text-align: justify;">
<span style="font-size: 12.0pt;">
“Sentamo-nos; eu num baixo e comprido divã; ele de costas para a janela
e para um alto relógio circular. Calculei que não menos de uma hora demoraria a
chegar o meu perseguidor, Richard Madden. A minha determinação irrevogável
podia esperar.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="mso-pagination: none; text-align: justify;">
<span style="font-size: 12.0pt;"> “</span><span style="font-family: Symbol; font-size: 12.0pt; mso-ascii-font-family: "Times New Roman"; mso-char-type: symbol; mso-hansi-font-family: "Times New Roman"; mso-symbol-font-family: Symbol;">-</span><span style="font-size: 12.0pt;"> Espantoso destino o de Tsui Pên </span><span style="font-family: Symbol; font-size: 12.0pt; mso-ascii-font-family: "Times New Roman"; mso-char-type: symbol; mso-hansi-font-family: "Times New Roman"; mso-symbol-font-family: Symbol;">-</span><span style="font-size: 12.0pt;"> disse Stephen Albert. – Governador da sua província
natal, douto em astronomia, em astrologia e na interpretação infatigável dos
livros canônicos, xadrezista, famoso poeta e calígrafo: tudo abandonou para
compor um livro e um labirinto. Renunciou aos prazeres da opressão, da justiça,
do numeroso leito, dos banquetes e até da erudição e enclausurou-se durante
treze anos no Pavilhão da Límpida Solidão. À sua morte, os herdeiros não
encontraram senão manuscritos caóticos. A família, como porventura o senhor não
ignora, quis entregá-los ao fogo; mas o seu testamenteiro </span><span style="font-family: Symbol; font-size: 12.0pt; mso-ascii-font-family: "Times New Roman"; mso-char-type: symbol; mso-hansi-font-family: "Times New Roman"; mso-symbol-font-family: Symbol;">-</span><span style="font-size: 12.0pt;"> um monge taoísta ou budista </span><span style="font-family: Symbol; font-size: 12.0pt; mso-ascii-font-family: "Times New Roman"; mso-char-type: symbol; mso-hansi-font-family: "Times New Roman"; mso-symbol-font-family: Symbol;">-</span><span style="font-size: 12.0pt;"> insistiu na publicação.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="mso-pagination: none; text-align: justify;">
<span style="font-size: 12.0pt;"> “</span><span style="font-family: Symbol; font-size: 12.0pt; mso-ascii-font-family: "Times New Roman"; mso-char-type: symbol; mso-hansi-font-family: "Times New Roman"; mso-symbol-font-family: Symbol;">-</span><span style="font-size: 12.0pt;"> Nós do sangue de Tsui Pên </span><span style="font-family: Symbol; font-size: 12.0pt; mso-ascii-font-family: "Times New Roman"; mso-char-type: symbol; mso-hansi-font-family: "Times New Roman"; mso-symbol-font-family: Symbol;">-</span><span style="font-size: 12.0pt;"> repliquei </span><span style="font-family: Symbol; font-size: 12.0pt; mso-ascii-font-family: "Times New Roman"; mso-char-type: symbol; mso-hansi-font-family: "Times New Roman"; mso-symbol-font-family: Symbol;">-</span><span style="font-size: 12.0pt;"> continuamos a execrar esse monge. A publicação foi
insensata. O livro é um acervo indeciso de rascunhos contraditórios. Examinei-o
umas vezes: no terceiro capítulo morre o herói, no quarto está vivo. Quanto à
outra empresa de Tsui Pên, ao seu Labirinto...<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="mso-pagination: none; text-align: justify;">
<span style="font-size: 12.0pt;"> “</span><span style="font-family: Symbol; font-size: 12.0pt; mso-ascii-font-family: "Times New Roman"; mso-char-type: symbol; mso-hansi-font-family: "Times New Roman"; mso-symbol-font-family: Symbol;">-</span><span style="font-size: 12.0pt;"> Aqui está o labirinto – disse, apontando-me uma alta
escrivaninha lacada.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="mso-pagination: none; text-align: justify;">
<span style="font-size: 12.0pt;"> “</span><span style="font-family: Symbol; font-size: 12.0pt; mso-ascii-font-family: "Times New Roman"; mso-char-type: symbol; mso-hansi-font-family: "Times New Roman"; mso-symbol-font-family: Symbol;">-</span><span style="font-size: 12.0pt;"> Um labirinto de marfim! </span><span style="font-family: Symbol; font-size: 12.0pt; mso-ascii-font-family: "Times New Roman"; mso-char-type: symbol; mso-hansi-font-family: "Times New Roman"; mso-symbol-font-family: Symbol;">-</span><span style="font-size: 12.0pt;"> exclamei. </span><span style="font-family: Symbol; font-size: 12.0pt; mso-ascii-font-family: "Times New Roman"; mso-char-type: symbol; mso-hansi-font-family: "Times New Roman"; mso-symbol-font-family: Symbol;">-</span><span style="font-size: 12.0pt;"> Um labirinto mínimo...<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="mso-pagination: none; text-align: justify;">
<span style="font-size: 12.0pt;"> “</span><span style="font-family: Symbol; font-size: 12.0pt; mso-ascii-font-family: "Times New Roman"; mso-char-type: symbol; mso-hansi-font-family: "Times New Roman"; mso-symbol-font-family: Symbol;">-</span><span style="font-size: 12.0pt;"> Um labirinto de símbolos </span><span style="font-family: Symbol; font-size: 12.0pt; mso-ascii-font-family: "Times New Roman"; mso-char-type: symbol; mso-hansi-font-family: "Times New Roman"; mso-symbol-font-family: Symbol;">-</span><span style="font-size: 12.0pt;"> corrigiu. </span><span style="font-family: Symbol; font-size: 12.0pt; mso-ascii-font-family: "Times New Roman"; mso-char-type: symbol; mso-hansi-font-family: "Times New Roman"; mso-symbol-font-family: Symbol;">-</span><span style="font-size: 12.0pt;"> Um invisível labirinto de tempo. A mim, bárbaro
inglês, foi dado revelar esse mistério diáfano. Ao fim de mais de cem anos, os
pormenores são irrecuperáveis, mas não é difícil conjeturar o que sucedeu. Tsui
Pên teria dito uma vez: ‘Retiro-me para escrever um livro’. E outra: ‘Retiro-me
para construir um labirinto’. Todos imaginaram duas obras; ninguém pensou que o
livro e o labirinto eram um único objeto. O Pavilhão da Límpida Solidão
erguia-se no centro de um jardim talvez intrincado; o fato pode ter sugerido
aos homens um labirinto físico. Tsui Pên morreu; ninguém, nas amplas terras que
foram suas, deu com o labirinto; a confusão do romance sugeriu-me que era esse
o labirinto. Houve duas circunstâncias que me deram a correta solução do
problema. Uma: a curiosa lenda de que Tsui Pên se propusera um labirinto que
fosse rigorosamente infinito. Outra: um fragmento de uma carta que descobri.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="mso-pagination: none; text-align: justify;">
<span style="font-size: 12.0pt;"> “Albert
levantou-se. Por uns instantes, virou-me as costas; abriu uma gaveta da áurea e
enegrecida escrivaninha. Voltou com um papel que fora carmesim; agora um
quadriculado rosado e tênue. Era justa a fama caligráfica de Tsui Pên. Li com
incompreensão e fervor estas palavras que com minucioso pincel redigira um
homem do meu sangue: ‘Deixo aos vários porvires (não a todos) o meu jardim dos
caminhos que se bifurcam’.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoBodyText3">
<span style="font-size: 12.0pt;"> “Devolvi a folha em silêncio. Albert
prosseguiu:<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoBodyText3">
<span style="font-size: 12.0pt;"> “</span><span style="font-family: Symbol; font-size: 12.0pt; mso-ascii-font-family: "Times New Roman"; mso-char-type: symbol; mso-hansi-font-family: "Times New Roman"; mso-symbol-font-family: Symbol;">-</span><span style="font-size: 12.0pt;"> Antes de exumar esta carta, eu perguntara-me de que
maneira pode um livro ser infinito. Não conjeturei outro procedimento senão o
de um volume cíclico, circular. Um volume cuja última página fosse idêntica à
primeira, com a possibilidade de continuar indefinidamente. Lembrei-me também
da noite que está no centro das <i>Mil e uma
Noites</i>, quando a rainha Xerezade (por uma mágica distração do copista) se
põe a relatar textualmente a história das <i>Mil
e uma Noites</i>, com o risco de chegar outra vez à noite na qual está fazendo
o relato, e assim por diante até o infinito. Imaginei também uma obra
platônica, hereditária, transmitida de pai para filho, em que cada novo
indivíduo acrescentasse um capítulo ou corrigisse com piedoso cuidado a página
dos antepassados. Estas conjeturas distraíram-me; mas nenhuma parecia
corresponder, nem sequer de um modo longínquo, aos contraditórios capítulos de
Tsui Pên. No meio desta perplexidade, enviaram-me de Oxford o manuscrito que o
senhor acabou de examinar. Detive-me, como é natural, na frase: ‘Deixo aos vários
porvires (não a todos) o meu jardim dos caminhos que se bifurcam’. Quase de
imediato compreendi; <i>o jardim dos
caminhos que se bifurcam</i> era o romance caótico; a frase <i>vários porvires (não a todos)</i> sugeriu-me
a imagem da bifurcação no tempo, e não no espaço. A releitura geral da obra
confirmou esta teoria. Em todas as ficções, sempre que um homem se defronta com
diversas alternativas, opta por uma e elimina as outras; na do quase
inextricável Tsui Pên, opta - simultaneamente - por todas. <i>Cria</i>, assim, diversos porvires, diversos tempos, que também
proliferam e se bifurcam. Daí as contradições do romance. Fang, digamos, tem um
segredo, um desconhecido bate à sua porta, Fang resolve matá-lo. Naturalmente,
há vários desenlaces possíveis. Fang pode matar o intruso, o intruso pode matar
Fang, ambos podem salvar-se, ambos podem morrer, etc. Na obra de Tsui Pên,
acontecem todos os desenlaces; cada um é o ponto de partida de outras
bifurcações. Às vezes os caminhos desse labirinto convergem: por exemplo, o
senhor chega a esta casa, mas num dos passados possíveis o senhor é meu
inimigo, noutro meu amigo. Se o senhor se resignar à minha pronúncia incurável,
leremos umas páginas. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="mso-pagination: none; text-align: justify;">
<span style="font-size: 12.0pt;"> “Seu
rosto, no vívido círculo da lâmpada, era sem dúvida o de um ancião, mas com
algo de inabalável e até de imortal. Leu com lenta precisão duas redações de um
mesmo capítulo épico. Na primeira, um exército marcha para uma batalha através
de uma montanha deserta; o horror das pedras e da sombra fá-lo desprezar a vida
e consegue com facilidade a vitória; na segunda, o mesmo exército atravessa um
palácio em que há uma festa; a resplandecente batalha parece-lhes uma
continuação da festa e conseguem a vitória. Eu ouvia com digna veneração estas
velhas ficções, talvez menos admiráveis que o fato de as ter ideado o meu
sangue e de um homem de um império longínquo mas restituir, no decorrer de uma
desesperada aventura, numa ilha ocidental. Lembro-me das palavras finais,
repetidas em cada redação como um mandamento secreto: ‘Assim combateram os
heróis, tranqüilo o admirável coração, violenta a espada, resignados a matar e
a morrer’. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="mso-pagination: none; text-align: justify;">
<span style="font-size: 12.0pt;"> “A
partir desse instante, senti à minha volta e no meu obscuro corpo uma invisível
e intangível palpitação. Não a palpitação dos divergentes, paralelos e
finalmente coalescentes exércitos, mas uma agitação mais inacessível, mais
íntima e que eles de certo modo prefiguravam. Stephen Albert prosseguiu:<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="mso-pagination: none; text-align: justify;">
<span style="font-size: 12.0pt;"> “</span><span style="font-family: Symbol; font-size: 12.0pt; mso-ascii-font-family: "Times New Roman"; mso-char-type: symbol; mso-hansi-font-family: "Times New Roman"; mso-symbol-font-family: Symbol;">-</span><span style="font-size: 12.0pt;"> Não creio que o seu ilustre antepassado jogasse
ociosamente com as variações. Não acho verosímil que tenha sacrificado treze
anos à infinita execução de uma experiência retórica. No seu país, o romance é
um gênero subalterno; naquele tempo era um gênero desprezível. Tsui Pên foi um
romancista genial, mas também foi um homem de letras que sem dúvida não se
considerou apenas um simples romancista. O testemunho dos seus contemporâneos
proclama </span><span style="font-family: Symbol; font-size: 12.0pt; mso-ascii-font-family: "Times New Roman"; mso-char-type: symbol; mso-hansi-font-family: "Times New Roman"; mso-symbol-font-family: Symbol;">-</span><span style="font-size: 12.0pt;"> e fartamente o confirma
sua vida – suas inclinações metafísicas e místicas. A controvérsia filosófica
usurpa boa parte do seu romance. Sei que de todos os problemas, nenhum outro o
inquietou e o ocupou tanto como o abismal problema do tempo. Ora bem, é esse o
único problema que não figura nas páginas do <i>Jardim</i>. Nem sequer usa a palavra que significa <i>tempo</i>. Como explica o senhor essa voluntária omissão?<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="mso-pagination: none; text-align: justify;">
<span style="font-size: 12.0pt;"> “Propus várias soluções; todas
insuficientes. Discutimo-las; por fim, Stephen Albert disse-me:<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="mso-pagination: none; text-align: justify;">
<span style="font-size: 12.0pt;"> “</span><span style="font-family: Symbol; font-size: 12.0pt; mso-ascii-font-family: "Times New Roman"; mso-char-type: symbol; mso-hansi-font-family: "Times New Roman"; mso-symbol-font-family: Symbol;">-</span><span style="font-size: 12.0pt;"> Numa charada cujo tema é o xadrez, qual é a única
palavra proibida?<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="mso-pagination: none; text-align: justify;">
<span style="font-size: 12.0pt;">
“Refleti um momento e respondi:<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="mso-pagination: none; text-align: justify;">
<span style="font-size: 12.0pt;"> “</span><span style="font-family: Symbol; font-size: 12.0pt; mso-ascii-font-family: "Times New Roman"; mso-char-type: symbol; mso-hansi-font-family: "Times New Roman"; mso-symbol-font-family: Symbol;">-</span><span style="font-size: 12.0pt;"> A palavra <i>xadrez</i>.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="mso-pagination: none; text-align: justify;">
<span style="font-size: 12.0pt;"> “</span><span style="font-family: Symbol; font-size: 12.0pt; mso-ascii-font-family: "Times New Roman"; mso-char-type: symbol; mso-hansi-font-family: "Times New Roman"; mso-symbol-font-family: Symbol;">-</span><span style="font-size: 12.0pt;"> Precisamente </span><span style="font-family: Symbol; font-size: 12.0pt; mso-ascii-font-family: "Times New Roman"; mso-char-type: symbol; mso-hansi-font-family: "Times New Roman"; mso-symbol-font-family: Symbol;">-</span><span style="font-size: 12.0pt;"> disse Albert. </span><span style="font-family: Symbol; font-size: 12.0pt; mso-ascii-font-family: "Times New Roman"; mso-char-type: symbol; mso-hansi-font-family: "Times New Roman"; mso-symbol-font-family: Symbol;">-</span><span style="font-size: 12.0pt;"> <i>O jardim dos
caminhos que se bifurcam</i> é uma enorme charada, ou parábola, cujo tema é o
tempo; essa causa recôndita proíbe-lhe a menção do seu nome. Omitir <i>sempre</i> uma palavra, recorrer a metáforas
ineptas e a perífrases evidentes, é talvez o modo mais enfático de indicá-la. É
o modo tortuoso que preferiu, em cada um dos meandros do seu infatigável
romance, o oblíquo Tsui Pên. Comparei centenas de manuscritos, corrigi os erros
que a negligência dos copistas introduziu, conjeturei o plano desse caos,
restabeleci, julguei restabelecer a ordem primordial, traduzi a obra inteira:
resulta-me que não emprega uma única vez a palavra <i>tempo</i>. A explicação é óbvia: <i>O
jardim dos caminhos que se bifurcam </i>é uma imagem incompleta, mas não falsa,
do universo tal como o concebia Tsui Pên. Ao contrário de Newton e de
Schopenhauer, o seu antepassado não acreditava num tempo uniforme, absoluto.
Acreditava em infinitas séries de tempos, numa rede crescente e vertiginosa de
tempos divergentes, convergentes e paralelos. Essa trama de tempos que se
aproximam, se bifurcam, se cortam ou que secularmente se ignoram, abrange <i>todas</i> as possibilidades. Nós não
existimos na maior parte desses tempos; nalguns deles existe o senhor e eu não;
noutros, eu, e não o senhor; noutros ainda, existimos os dois. Neste, que um
favorável acaso me proporciona, o senhor chegou à minha casa; noutro, o senhor,
ao atravessar o jardim, deu comigo morto; e noutro, eu digo estas mesmas
palavras, mas sou um erro, um fantasma.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="mso-pagination: none; text-align: justify;">
<span style="font-size: 12.0pt;"> “</span><span style="font-family: Symbol; font-size: 12.0pt; mso-ascii-font-family: "Times New Roman"; mso-char-type: symbol; mso-hansi-font-family: "Times New Roman"; mso-symbol-font-family: Symbol;">-</span><span style="font-size: 12.0pt;"> Em todos </span><span style="font-family: Symbol; font-size: 12.0pt; mso-ascii-font-family: "Times New Roman"; mso-char-type: symbol; mso-hansi-font-family: "Times New Roman"; mso-symbol-font-family: Symbol;">-</span><span style="font-size: 12.0pt;"> articulei não sem um certo tremor </span><span style="font-family: Symbol; font-size: 12.0pt; mso-ascii-font-family: "Times New Roman"; mso-char-type: symbol; mso-hansi-font-family: "Times New Roman"; mso-symbol-font-family: Symbol;">-</span><span style="font-size: 12.0pt;"> agradeço e venero a sua recriação do jardim de Tsui
Pên.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="mso-pagination: none; text-align: justify;">
<span style="font-size: 12.0pt;"> “</span><span style="font-family: Symbol; font-size: 12.0pt; mso-ascii-font-family: "Times New Roman"; mso-char-type: symbol; mso-hansi-font-family: "Times New Roman"; mso-symbol-font-family: Symbol;">-</span><span style="font-size: 12.0pt;"> Não em todos </span><span style="font-family: Symbol; font-size: 12.0pt; mso-ascii-font-family: "Times New Roman"; mso-char-type: symbol; mso-hansi-font-family: "Times New Roman"; mso-symbol-font-family: Symbol;">-</span><span style="font-size: 12.0pt;"> murmurou com um sorriso. </span><span style="font-family: Symbol; font-size: 12.0pt; mso-ascii-font-family: "Times New Roman"; mso-char-type: symbol; mso-hansi-font-family: "Times New Roman"; mso-symbol-font-family: Symbol;">-</span><span style="font-size: 12.0pt;"> O tempo bifurca-se perpetuamente na direção de
inumeráveis futuros. Num deles sou seu inimigo. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="mso-pagination: none; text-align: justify;">
<span style="font-size: 12.0pt;">
“Voltei a sentir aquela palpitação de que falei. Pareceu-me que o úmido
jardim que rodeava a casa estava saturado até ao infinito de pessoas
invisíveis. Essas pessoas eram Albert e eu, secretos, ocupadíssimos e
multiformes noutras dimensões do tempo. Levantei os olhos e o tênue pesadelo
dissipou-se. No amarelo e negro jardim havia um único homem; mas esse homem era
forte como uma estátua, mas esse homem avançava pelo caminho e era o capitão
Richard Madden.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="mso-pagination: none; text-align: justify;">
<span style="font-size: 12.0pt;"> “</span><span style="font-family: Symbol; font-size: 12.0pt; mso-ascii-font-family: "Times New Roman"; mso-char-type: symbol; mso-hansi-font-family: "Times New Roman"; mso-symbol-font-family: Symbol;">-</span><span style="font-size: 12.0pt;"> O futuro já existe </span><span style="font-family: Symbol; font-size: 12.0pt; mso-ascii-font-family: "Times New Roman"; mso-char-type: symbol; mso-hansi-font-family: "Times New Roman"; mso-symbol-font-family: Symbol;">-</span><span style="font-size: 12.0pt;"> respondi </span><span style="font-family: Symbol; font-size: 12.0pt; mso-ascii-font-family: "Times New Roman"; mso-char-type: symbol; mso-hansi-font-family: "Times New Roman"; mso-symbol-font-family: Symbol;">-</span><span style="font-size: 12.0pt;">, mas eu sou seu amigo. Posso examinar outra vez a
carta?<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="mso-pagination: none; text-align: justify;">
<span style="font-size: 12.0pt;">
“Albert levantou-se. Alto, abriu a gaveta da alta escrivaninha; virou-me
por um momento as costas. Eu já tinha preparado o revólver. Disparei com
extremo cuidado: Albert tombou, sem um ai, imediatamente. Juro que sua morte
foi instantânea: uma fulminação.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="mso-pagination: none; text-align: justify;">
<span style="font-size: 12.0pt;"> “O
resto é irreal, insignificante. Nesse momento irrompeu Madden e prendeu-me. Fui
condenado à forca. Abominavelmente venci: comuniquei a Berlim o secreto nome da
cidade que devem atacar. Ontem bombardearam-na; li isso nos mesmos jornais que
apresentaram à Inglaterra o enigma de o sábio sinólogo Stephen Albert ter
morrido assassinado por um desconhecido, Yu Tsun. O Chefe decifrou esse enigma.
Sabe que o meu problema era indicar (através do estrépito da guerra) a cidade
que se chama Albert e que não achei outro meio senão matar uma pessoa com esse
nome. Não sabe (ninguém pode saber) a minha imensa contrição e cansaço.<o:p></o:p></span></div>
<div align="right" class="MsoNormal" style="mso-pagination: none; text-align: right;">
<br /></div>
<br />
<div align="right" class="MsoNormal" style="mso-pagination: none; text-align: right;">
<span style="font-size: 12.0pt;">Jorge Luis Borges, <b>in</b> <i>Ficções</i> (1941).<o:p></o:p></span></div>
<div align="right" class="MsoNormal" style="mso-pagination: none; text-align: right;">
<span style="font-size: 12.0pt;"><br /></span></div>
<div class="MsoBodyText3">
<span style="font-size: 11.0pt; mso-bidi-font-size: 10.0pt;"> </span><span style="font-size: 11pt;"> </span></div>
<div class="MsoNormal" style="mso-pagination: none; text-align: justify;">
<span style="font-size: x-small;">____________________________<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: right;">
</div>
<div class="MsoBodyText">
<span style="font-size: x-small;"><span style="font-family: 'Times New Roman', serif;">(1) Hipótese odiosa e ridícula. O espião prussiano Hans
Rabener, codinome Viktor Runeberg, agrediu com uma pistola automática o
portador da ordem de prisão, capitão Richard Madden. Este, em legítima defesa,
causou-lhe ferimentos que vieram a determinar sua morte. (</span><span style="font-family: "Times New Roman","serif";">Nota do editor</span></span><span style="font-family: 'Times New Roman', serif;"><span style="font-size: x-small;">).</span><o:p></o:p></span></div>
Sérgio Freitas Milan de Almeidahttp://www.blogger.com/profile/18218908588520138151noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-2109283952580855674.post-27083992102654899692013-11-17T20:19:00.000-02:002013-11-17T20:19:23.633-02:00O canário - Katherine Mansfield... Você vê aquele grande prego à direita da porta da frente? Dificilmente olho para ele, mesmo agora, e até hoje não tive vontade de arrancá-lo. Gostaria de pensar que ele fosse permanecer ali, mesmo depois de mim. Às vezes imagino as pessoas no futuro a dizerem: "Deve ter havido uma gaiola pendurada ali." E isso conforta-me; sinto que ele não está inteiramente esquecido.<br />
<br />
... Você não pode avaliar como era maravilhoso o seu canto: não cantava como os outros canários. E isto não é apenas fantasia minha. De minha janela, eu costumava ver as pessoas pararem em frente ao portão, para ouvir melhor, ou encostarem-se na cerca perto da falsa-laranjeira, um bocado de tempo, emocionadas. Suponho que você vá achar isso um absurdo — não acharia se o tivesse ouvido cantar —, mas parecia, realmente, que ele cantava as canções completas, com começo e fim.<br />
<br />
... Por exemplo: à tarde, quando eu terminava o serviço, mudava de blusa e trazia minha costura para a varanda, ele costumava pular de um poleiro para o outro, bater contra as grades da gaiola, como se fosse para atrair minha atenção, bebia um gole d'água, tal como o faria um cantor, e punha-se a executar uma canção tão afinada que eu tinha de largar a agulha para ouvi-lo. Não sou capaz de descrevê-lo; bem que gostaria. Era sempre igual, toda tarde, e eu sentia que compreendia cada nota emitida.<br />
<br />
... Eu o amava. Como eu o amava! Talvez não importe muito que coisa amamos neste mundo. Mas devemos amar alguma coisa. É claro, eu tinha minha casinha e o jardim, mas, por algumas razões, não era o bastante. Flores são maravilhosas, mas não sabem demonstrar simpatia. Naquela ocasião eu amava a Estrela Dalva. Isto lhe parece uma tolice? Eu tinha o costume de ir para o jardim, depois do pôr-do-sol, e esperá-la até que brilhasse por cima do eucalipto escuro. Eu costumava murmurar: "Aí está você, minha querida." E exatamente nesse instante ela parecia brilhar só para mim. Ela parecia compreender isso... alguma coisa que é como um anseio, mas não é um anseio. Ou lamento — sim, é mais parecido com lamento. E, no entanto, lamento por quê? Eu tenho tantos motivos para ser grata!<br />
<br />
... Mas depois que ele entrou em minha vida, esqueci a Estrela Dalva; não precisei mais dela. Mas foi estranho. Quando o chinês chegou à minha porta vendendo pássaros, ele, em sua pequena gaiola, em vez de se debater contra as grades, como aqueles pobres pintassilgos, soltou um trinado fraco e curto, e eu me vi dizendo, como havia dito para a estrela por cima do eucalipto: "Aí está você, meu querido." Desde aquele momento, ele foi meu.<br />
<br />
... Até hoje me surpreendo, quando me lembro de como ele e eu partilhávamos nossas vidas. Na hora em que eu descia, pela manhã, e retirava a toalha que cobria sua gaiola, ele saudava-me com uma notinha sonolenta. Sentia que ele queria dizer: "Tia! Tia!" Então, pendurava a gaiola no prego do lado de fora, enquanto servia o café aos meus três rapazes, e nunca o levava de volta para dentro enquanto não tínhamos a casa só para nós dois. Depois, enquanto eu lavava a louça, era uma diversão completa. Eu abria um jornal sobre um canto da mesa e, logo depois que eu punha a gaiola sobre o jornal, ele costumava bater as asas desesperadamente, como se não soubesse o que ia acontecer. "Você é um perfeito ator", eu gostava de dizer-lhe com ar de zangada. Eu raspava o fundo da gaiola, espalhava areia em cima, renovava a água e o alpiste das latinhas, espetava um pedaço de couve e meia pimenta malagueta na grade. Tenho plena certeza de que ele compreendia e apreciava cada item dessa pequena operação. Sabe, ele era por natureza muito asseado. Nunca havia uma sujeira em seu poleiro. E era preciso ver como gostava de se banhar, para se perceber que ele tinha verdadeira paixão por limpeza. Sua banheira era colocada por último; no mesmo instante ele pulava nela. Primeiro batia uma asa, depois a outra; então, mergulhava a cabeça e umedecia as penas do peito. Gotas d'água espalhavam-se por toda a cozinha, mas ele ainda não queria parar. Eu costumava dizer-lhe: "Agora basta. Você está apenas se exibindo." E por fim ele pulava para fora e, de pé sobre uma das pernas, começava a se bicar para enxugar-se. Finalmente sacudia-se, dava uma pirueta, um gorjeio, levantava a cabeça e... Ah! como dói lembrar. Nessa hora eu estava sempre enxugando as facas e quase me convencia de que elas também cantavam quando eu as esfregava para brilharem em cima da tábua.<br />
<br />
... Companhia! É isso, veja, isso é o que ele era. Uma companhia perfeita. Se você algum dia viveu só, compreenderá o quanto isto é precioso. É verdade que havia meus três rapazes, que chegavam para o jantar todas as tardes e algumas vezes ficavam na sala, lendo o jornal. Mas eu não podia esperar que eles se interessassem pelas pequenas coisas corriqueiras do meu dia-a-dia. Por que se interessariam? Eu nada era para eles. Na verdade, eu os ouvira certa vez na escada referindo-se a mim como "O espantalho". Não importa. Não tem importância. Eu entendo muito bem. Eles são jovens. Por que haveria eu de ficar ressentida? Mas lembro-me de me sentir grata por não estar inteiramente só, naquela noite. Eu lhe disse, depois que os rapazes tinham ido embora. Eu lhe disse: "Você sabe de que nome eles chamam a Tia?" E ele deixou cair a cabeça para um lado e olhou-me com seu olhinho brilhante até que eu não pude conter o riso. Aquilo pareceu diverti-lo.<br />
<br />
... Você já criou pássaros? Se não, tudo isto vai talvez parecer-lhe exagerado. As pessoas têm idéia de que os pássaros são seres sem coração, pequenas criaturas frias, ao contrário de cães e gatos: Minha lavadeira costumava dizer, nas segundas-feiras, quando queria saber por que eu não criava "um bonito fox-terrier": "Ter um canário não traz conforto, senhora." Não é verdade. É um grande engano. Lembro-me de uma noite. Eu tinha tido um sonho horrível — os sonhos podem ser muito cruéis — do qual, mesmo depois de acordada, não podia livrar-me. Então, vesti minha camisola e desci à cozinha, para tomar um copo d'água. Era uma noite de inverno e chovia forte. Acho que eu estava ainda meio adormecida. Pela janela da cozinha, que não tinha veneziana, a escuridão parecia estar olhando fixamente para dentro, espionando. E de repente senti que era insuportável não ter alguém a quem pudesse dizer: "Tive um sonho tão horrível" — ou "Defenda-me da escuridão." Até mesmo cobri meu rosto, por um momento. Então veio o agradável som "Psiu! Psiu!" A gaiola estava em cima da mesa, e o pano que a cobria havia escorregado, deixando uma fenda, por onde entrava um raio de luz. "Psiu, psiu!" — disse o encantador bichinho outra vez, docemente, como para dizer "Estou aqui, Tia! Estou aqui!" Aquilo soou tão agradável e confortante para mim, que quase chorei.<br />
<br />
... E agora ele se foi. Nunca mais terei um outro pássaro, nem qualquer outro animal de estimação. Como poderia ter? Quando o encontrei, deitado de costas, os olhos turvos, as patinhas retorcidas, quando percebi que nunca mais ouviria seu canto tão querido, alguma coisa pareceu morrer em mim. Meu coração ficou vazio, como se fosse a gaiola dele. Eu hei de superar isso. É claro. Preciso fazê-lo. Com o tempo as pessoas se recuperam de qualquer coisa. Dizem que eu sempre estou bem-disposta, e têm razão. Graças a Deus, estou.<br />
<br />
... Contudo, sem ser mórbida e mexendo nas lembranças, devo confessar que vejo nisto alguma coisa de triste na vida. Não me refiro à tristeza que todos nós conhecemos, como a doença, a pobreza e a morte. Não, é algo diferente. É lá no fundo, bem no fundo, faz parte da gente, como a respiração. Por mais que trabalhe, por mais que me canse, basta parar para sentir que essa coisa está lá, esperando. Muitas vezes eu me pergunto se todo mundo sente do mesmo jeito. Nunca se pode saber. Mas não é extraordinário que dentro de seu canto alegre, doce, tudo o que eu ouvia era: tristeza? ah, o que é isto?<br />
<br />
<div style="text-align: center;">
* * *</div>
<div style="text-align: center;">
<br /></div>
Katherine Mansfield<i>, in</i> "Felicidade e Outros Contos", Editora Revan — Rio de Janeiro, 1991, tradução de Julieta Cupertino.<br />
<br />
<i>Katherine Mansfield nasceu em 14 de outubro de 1888, em Wellington, Nova Zelândia. Filha de pais ingleses, de 1903 a 1906 estudou na Inglaterra. Voltou a Wellington, onde exerceu atividade literária principiante. Convenceu seu pai a continuar seus estudos na Inglaterra, para lá retornando em 1908. Faz e desfaz no mesmo dia um casamento, em março de 1909, em Londres. Fica grávida, já em outra ligação amorosa. Passa uma temporada na Alemanha com sua mãe, e em junho sofre um aborto. Volta a Londres em 1910 e um ano depois publica </i>In a German Pension<i>, seu primeiro volume de contos. Em meio a uma conturbada vida afetiva, sexual e social, vê seu irmão morrer, em 1915, durante a guerra. Surgem os primeiros acessos de tuberculose. Em 1918 publica seu segundo volume de contos: </i>Prelude<i>. Em 1920, outro volume: </i>Je Ne Parle Pas Français<i>. Em 1921, </i>Bliss and Other Stories<i>. Em 1922, </i>The Garden Party and Other Stories<i>. Com o agravamento da tuberculose, tenta tratar-se na Suíça, em 1922. Escreve o conto acima, o último que deixou acabado. Morreu no dia 09 de janeiro de 1923, aos 34 anos de idade. Sua consagração ocorreu após a morte. Teve mais de dez títulos póstumos, entre relatos curtos, cartas e diários. Hoje é considerada um dos maiores nomes da literatura inglesa. Dela disse Virginia Woolf, que a considerava o maior nome de contista na língua inglesa: "eu tinha ciúme do que ela escrevia".</i>Sérgio Freitas Milan de Almeidahttp://www.blogger.com/profile/18218908588520138151noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-2109283952580855674.post-46161385075945759362013-10-20T10:01:00.001-02:002013-10-20T10:01:59.043-02:00Tecendo a manhã - João Cabral de Melo Neto<div>
<span style="font-size: large;"><br /></span></div>
<div>
<span style="font-size: large;">Um galo sozinho não tece uma manhã: </span></div>
<div>
<span style="font-size: large;">ele precisará sempre de outros galos. </span></div>
<div>
<span style="font-size: large;">De um que apanhe esse grito que ele </span></div>
<div>
<span style="font-size: large;">e o lance a outro; de um outro galo </span></div>
<div>
<span style="font-size: large;">que apanhe o grito de um galo antes </span></div>
<div>
<span style="font-size: large;">e o lance a outro; e de outros galos </span></div>
<div>
<span style="font-size: large;">que com muitos outros galos se cruzem </span></div>
<div>
<span style="font-size: large;">os fios de sol de seus gritos de galo, </span></div>
<div>
<span style="font-size: large;">para que a manhã, desde uma teia tênue, </span></div>
<div>
<span style="font-size: large;">se vá tecendo, entre todos os galos.</span></div>
<div>
<span style="font-size: large;"><br /></span></div>
<div>
<span style="font-size: large;"> 2</span></div>
<div>
<span style="font-size: large;"><br /></span></div>
<div>
<span style="font-size: large;">E se encorpando em tela, entre todos, </span></div>
<div>
<span style="font-size: large;">se erguendo tenda, onde entrem todos, </span></div>
<div>
<span style="font-size: large;">se entretendendo para todos, no toldo </span></div>
<div>
<span style="font-size: large;">(a manhã) que plana livre de armação. </span></div>
<div>
<span style="font-size: large;">A manhã, toldo de um tecido tão aéreo </span></div>
<div>
<span style="font-size: large;">que, tecido, se eleva por si: luz balão. </span></div>
<div>
<br /></div>
<div>
João Cabral de Melo Neto, <b>in </b><i>A Educação pela Pedra</i> (1965).</div>
Sérgio Freitas Milan de Almeidahttp://www.blogger.com/profile/18218908588520138151noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-2109283952580855674.post-77769936886998569192013-09-23T22:15:00.002-03:002013-09-23T22:15:14.647-03:00Devemos ter tolerância com toda a estultice... - Schopenhauer<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjEmn6BnHLJpMwcYaQe3qnRLOIcBYYqu2hJEGOzLlTZ_7YgByNbE3ePtNNTFcEqF9Ak1rT3pwHab6aDNska64FUSHa7eKS4Rra3v2kSXJOJkUKLLsS7PXUMSqeZKOOZGL8I93gIW42an2k/s1600/Schopenhauer.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjEmn6BnHLJpMwcYaQe3qnRLOIcBYYqu2hJEGOzLlTZ_7YgByNbE3ePtNNTFcEqF9Ak1rT3pwHab6aDNska64FUSHa7eKS4Rra3v2kSXJOJkUKLLsS7PXUMSqeZKOOZGL8I93gIW42an2k/s1600/Schopenhauer.jpg" /></a></div>
<div class="MsoNormal">
<i><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.5pt; line-height: 115%;"><br /></span></i></div>
<div class="MsoNormal">
<i><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.5pt; line-height: 115%;"><br /></span></i></div>
<div class="MsoNormal">
<i><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.5pt; line-height: 115%;"> Pardon
is the word to all</span></i><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.5pt; line-height: 115%;"> [perdão é a palavra para tudo]
(Shakespeare, <i>Cymbeline</i>, Ato 5, Cena
5).<o:p></o:p></span></div>
<br />
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.5pt; line-height: 115%;"> Devemos
ter tolerância com toda a <i>estultice</i>,
com todos os <i>erros</i> e com todos os <i>vícios humanos</i>, considerando que aquilo
que temos diante de nós não passa de nossa própria estultice, de nossos
próprios erros e de nossos próprios vícios: de fato, são os erros da
humanidade, à qual pertencemos e cujos erros, por conseguinte, trazemos todos
em nós, portanto, também aqueles que agora nos causam indignação somente
porque, justamente agora, não afloram em nós. Aliás, não se encontram na
superfície, mas embaixo, na base, e aflorarão na primeira ocasião e se
mostrarão tal como agora os vemos nos outros; embora em um indivíduo se
sobressaia determinado erro e, em outro, aquele outro erro, ou ainda que não se
possa negar que a medida total de todas as qualidades ruins seja muito maior em
um indivíduo do que em outro. Pois a diferença entre as individualidades é
incalculavelmente grande. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.5pt; line-height: 115%;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: right;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.5pt; line-height: 115%;">Schopenhauer, <b>in </b><i>A arte de envelhecer</i>. Martins Fontes, São Paulo, 2012.</span></div>
Sérgio Freitas Milan de Almeidahttp://www.blogger.com/profile/18218908588520138151noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-2109283952580855674.post-27238286826954857532013-08-22T21:36:00.000-03:002018-03-27T22:57:39.295-03:00As cenas da nossa vida - Arthur Schopenhauer <div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
As cenas da nossa vida assemelham-se a um quadro feito de
mosaicos toscos; é ineficaz visto de perto e tem de ser admirado à distância
para se lhe apreciar a beleza. É por isso que atingir algo desejado é descobrir
como isso é vão; e é por isso que, embora vivamos toda a nossa vida na
expectativa de coisas melhores, costumamos ao mesmo tempo ansiar tristemente
pelo que passou. Por outro lado, o presente é encarado como algo temporário e
que serve apenas como uma caminhada para o nosso alvo. É por isso que muitos
descobrem, ao olharem para trás, que durante toda a vida viveram <i>ad interim</i>, e surpreendem-se por ver que
o que deixaram passar sem lhe prestar atenção ou sem o gozar foi precisamente a
sua vida, foi precisamente terem vivido na expectativa do que viveram.</div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: left;">
Arthur Schopenhauer (1788-1860).</div>
Sérgio Freitas Milan de Almeidahttp://www.blogger.com/profile/18218908588520138151noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-2109283952580855674.post-657408735143816442013-07-04T22:45:00.000-03:002017-03-19T14:01:30.437-03:00... cinco sextos das pessoas são canalhas, néscias ou imbecis - Arthur Schopenhauer<div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-family: "times new roman" , "serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 115%;">Num mundo em que pelo
menos cinco sextos das pessoas são canalhas, néscias ou imbecis, é preciso que
o retraimento seja a base do sistema de vida de cada indivíduo do outro sexto
restante – e quanto mais ele se distanciar dos demais tanto melhor. A convicção
de que o mundo é um deserto, em que não se pode contar com companhia, deve se
tornar uma sensação habitual. Assim como as paredes limitam o olhar, que de
novo se amplia tão logo se tenha diante de si campos e descampados, assim
também a companhia humana limita meu espírito, e a solidão de novo o amplia.
Giordano Bruno diz que o homem comum, normal, civil e urbano, que procura e
alcança a verdade, torna-se um homem selvagem, semelhante a um cervo ou
eremita; e que todos aqueles que neste mundo quisessem fruir uma vida superior
decerto diriam em uníssono: <i>vede, fugi
para longe e permaneci na solidão</i> (Salmos, 55, 8). Pois a ocupação com
coisas divinas os torna mortos para a multidão. De maneira semelhante
expressou-se Kleist, com louvor de Schiller: <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-family: "times new roman" , "serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 115%;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;">
<i><span style="font-family: "times new roman" , "serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 115%;">Um
homem de verdade tem de ficar distante dos homens</span></i><span style="font-family: "times new roman" , "serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 115%;">.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-family: "times new roman" , "serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 115%;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-family: "times new roman" , "serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 115%;">Num mundo tão
irrestritamente comum, todo aquele que for extraordinário irá necessariamente
se isolar, e de fato se isola. Quanto mais o homem se isola da companhia dos
homens, melhor se sente. Como os famintos que recusam um alimento estragado ou
envenenado, assim também devem proceder os homens que sentem falta de
companhia, em relação aos demais homens, considerando o que são. Uma felicidade
grande e rara é, portanto, possuir tanto em si que não se é impulsionado pelo
fastio interior ou pelo tédio a procurar a companhia dos homens, sobre os quais
até mesmo o nobre e brando Petrarca disse:</span></div>
<br />
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "times new roman" , "serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 115%;"> <i>Pois
o homem não é apenas um animal vil e repugnante (digo isso a contragosto, quem
dera a experiência não o tivesse manifestado clara e repetidas vezes e não continuasse
a fazê-lo) mas também danoso, volúvel, pérfido, ambíguo, feroz e cruel!</i> (<i>De vita solitaria</i>, 1346).<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "times new roman" , "serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 115%;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "times new roman" , serif;"><span style="line-height: 18px;"> Arthur Schopenhauer (1788-1860).</span></span></div>
Sérgio Freitas Milan de Almeidahttp://www.blogger.com/profile/18218908588520138151noreply@blogger.com0