O incivil mestre-de-cerimônias Kotsuké no Suké - Jorge Luis Borges
O
infame deste capítulo é o incivil mestre-de-cerimônias Kotsuké no Suké, aziago
funcionário que motivou a degradação do senhor da Torre de Ako e não se quis
eliminar como um cavaleiro, quando a apropriada vingança o cominou. É homem que
merece a gratidão de todos os homens, porque despertou preciosas lealdades e
foi a negra e necessária ocasião de uma tarefa imortal. Uma centena de
romances, de monografias, de teses doutorais e de óperas comemoram o fato -
para não falar nas efusões em porcelana, lápis-lazúli venulado, e em laca. Até
o versátil celulóide serve-o, uma vez que a História Doutrinal dos Quarenta e
Sete Capitães - tal é o seu nome - é a mais repetida inspiração do cinema
japonês. A minuciosa glória que essas ardentes atenções afirmam é algo mais que
justificável: é imediatamente justa para quem quer que seja.
Sigo o relato de A. B. Mitford, que
omite as contínuas distrações que opera a cor local e prefere atender ao
movimento do glorioso episódio. Essa boa ausência de “orientalismo” dá margem a
se suspeitar de que se trata de uma versão direta do japonês.
O CORDÃO DESATADO
Na desvanecida primavera de 1702, o
ilustre senhor da Torre de Ako teve de receber e hospedar um enviado imperial.
Dois mil e trezentos anos de cortesia (alguns mitológicos) haviam complicado
angustiosamente o cerimonial da recepção. O enviado representava o imperador,
mas à maneira de alusão ou de símbolo: matiz que não era menos improcedente
sublinhar do que atenuar. Para impedir os equívocos muito facilmente fatais, um
funcionário da corte de Yedo precedia-o, na qualidade de mestre-de-cerimônias.
Longe da comodidade cortesã e condenado a uma villégiature montanhesa que lhe deve ter parecido um desterro, Kira
Kotsuké no Suké dava sem jeito as instruções. Às vezes, dilatava até à
insolência o tom magistral. Seu discípulo, o senhor da Torre, procurava
dissimular esse escárnio. Não sabia replicar, a disciplina vedava-lhe toda a
violência. Uma manhã, contudo, o cordão do sapato do mestre desatou-se e este
lhe pediu que o reatasse. O cavaleiro fê-lo com humildade, porém com indignação
interior. O incivil mestre-de-cerimônias disse-lhe que na realidade era
incorrigível, e que somente um campônio seria capaz de amarrar um nó tão torpe.
O senhor da Torre puxou da espada e deu-lhe um golpe. O outro fugiu, apenas
rubricada a fronte por um fio tênue de sangue... Dias depois, o tribunal
militar proferia sentença contra o agressor e o condenava ao suicídio. No pátio
central da Torre de Ako, elevaram um estrado de feltro vermelho e nele se
mostrou o condenado e lhe entregaram um punhal de ouro e pedras, e ele
confessou publicamente sua culpa e se foi despindo até a cintura e abriu o
ventre com as duas feridas rituais, e morreu como um samurai, e os espectadores
mais afastados não viram sangue porque o feltro era vermelho. Um homem
encanecido e cuidadoso decapitou-o com a espada: o conselheiro Kuranosuké, seu
padrinho.
O SIMULADOR DA INFÂMIA
A Torre de Takumi no Kami foi
confiscada; seus capitães, debandados; sua família, arruinada e obscurecida;
seu nome, vinculado à execração. Um rumor quer que, na mesma noite em que ele
se matou, quarenta e sete de seus capitães deliberaram no cume de um monte e
planejaram, com toda a precisão, o que se produziu um ano mais tarde. O certo é
que devem ter procedido de justificadas demoras e que algum de seus concílios teve lugar, não no cume difícil de uma montanha, mas numa capela em um bosque,
medíocre pavilhão de madeira branca, sem outro adorno que a caixa retangular
que contém um espelho. Apetecia-lhes a vingança, e a vingança lhes deve ter
parecido inalcançável.
Kira Kotsuké no Suké, o odiado
mestre-de-cerimônias, havia fortificado sua casa, e uma nuvem de arqueiros e
esgrimistas custodiava seu palanquim. Contava com espias incorruptíveis,
pontuais e secretos. Mais do que ninguém, zelavam e vigiavam o presumido
capitão dos vingadores: Kuranosuké, o conselheiro. Este percebeu-o por acaso e
fundou seu projeto vindicativo sobre esse fato.
Mudou-se para Kioto, cidade
insuperável em todo o império pela cor de seus outonos. Deixou-se arrebatar
pelos lupanares, pelas casas de jogo e pelas tabernas. Apesar de suas cãs,
conviveu com rameiras e com poetas, e gente ainda pior. Uma vez expulsaram-no
da taberna e amanheceu adormecido no umbral, a cabeça tombada sobre um vômito.
Um homem de Satsuma reconheceu-o e
disse, com tristeza e com ira: “Não é este, porventura, aquele conselheiro de
Asano Takumi no Kami, que o ajudou a morrer e que, em vez de vingar seu senhor,
entrega-se aos deleites e à vergonha? Oh, tu, indigno do nome de Samurai!”
Pisou-lhe o rosto adormecido e cuspiu nele. Quando os espiões denunciaram essa
passividade, Kotsuké no Suké sentiu um grande alívio.
Os fatos não pararam aí. O
conselheiro despediu a esposa e o mais jovem de seus filhos, e comprou uma
mulher num lupanar, famosa infâmia que lhe alegrou o coração e relaxou a
temerosa prudência do inimigo. Este acabou por dispensar a metade de seus
guardas.
Numa das noites atrozes do inverno
de 1703, os quarenta e sete capitães marcaram encontro num desmantelado jardim
dos arredores de Yedo, perto da ponte e da fábrica de baralhos. Iam com as
bandeiras de seu senhor. Antes de empreenderem o assalto, advertiram os
vizinhos de que não se tratava de violação às leis, mas de operação militar de
estrita justiça.
A CICATRIZ
Dois bandos atacaram o palácio de
Kira Kotsuké no Suké. O conselheiro comandou o primeiro, que atacou a porta da
frente; o segundo, seu filho mais velho, que completaria dezesseis anos nessa
noite. A história sabe os diversos momentos desse pesadelo tão lúcido: a
descida arriscada e pendular pelas escadas de corda, o tambor do ataque, a
precipitação dos defensores, os arqueiros postados na açotéia, o direto destino
das flechas aos órgãos vitais do homem, as porcelanas infamadas de sangue, a
morte ardente, que depois é glacial; os impudores e desordens da morte. Nove
capitães morreram; os defensores não eram menos valentes e não se quiseram
render. Pouco depois da meia-noite, toda a resistência cessou.
Kira Kotsuké no Suké, razão
ignominiosa dessas lealdades, não aparecia. Procuraram-no por todos os cantos
desse inquieto palácio, e já desesperavam de o encontrar quando o conselheiro
notou que os lençóis de seu leito estavam ainda mornos. Voltaram a procurar e
descobriram uma estreita janela dissimulada por um espelho de bronze. Em baixo,
de um pequeno pátio sombrio, olhava-os um homem de branco. Uma tênue espada
estava em sua mão direita. Quando desceram, o homem entregou-se sem luta. Raiava-lhe
a fronte uma cicatriz: velho desenho do aço de Takumi no Kami.
Então os sangrentos capitães
arrojaram-se aos pés do odioso e lhe disseram que eram os oficiais do senhor da
Torre, de cuja perdição e de cujo fim ele era culpado, e lhe rogaram que se suicidasse,
como o deve fazer um samurai.
Em vão propuseram esse decoro ao seu
ânimo servil. Era homem inacessível à honra; de madrugada tiveram de degolá-lo.
O TESTEMUNHO
Já satisfeita sua vingança (mas sem
ira, e sem agitação, e sem lástima), os capitães dirigiram-se ao templo que
guarda as relíquias de seu senhor.
Em uma caldeira levam a incrível
cabeça de Kira Kotsuké no Suké e se revezam para cuidar dela. Atravessam os
campos e as províncias, à luz franca do dia. Os homens os bendizem e choram. O
príncipe de Sendai quer hospedá-los, mas respondem que há quase dois anos os
aguarda seu senhor. Chegam ao escuro sepulcro e oferecem a cabeça do inimigo.
A Suprema Corte emite a sentença. É
o que esperam: lhes é outorgado o privilégio do suicídio. Todos o cumprem,
alguns com ardente serenidade, e repousam ao lado do seu senhor. Homens e
crianças vêm rezar no sepulcro desses homens tão fiéis.
O HOMEM DE SATSUMA
Entre os peregrinos que acodem, há
um rapaz empoeirado e exausto que deve ter vindo de longe. Prosterna-se diante
do monumento de Oishi Kuranosuké, o conselheiro, e diz em voz alta: “Eu te vi
jogado à porta de um lupanar de Kioto e não pensei que estavas premeditando a
vingança de teu senhor, e te julguei um soldado sem fé e cuspi em teu rosto. Vim
te dar uma satisfação”. Disse isso e praticou haraquiri.
O prior condoeu-se de sua valentia e
lhe deu sepultura no lugar em que os capitães repousam.
Este é o final da história dos
quarenta e sete homens leais - salvo que não tem fim, porque os outros homens
que não somos leais talvez, mas nunca perderemos de todo a esperança de sê-lo,
continuaremos a honrá-los com palavras.
Jorge Luis Borges, “História
Universal da Infâmia” (1935).
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