sábado, 25 de abril de 2009

O incivil mestre-de-cerimônias Kotsuké no Suké - Jorge Luis Borges

O incivil mestre-de-cerimônias Kotsuké no Suké - Jorge Luis Borges

           O infame deste capítulo é o incivil mestre-de-cerimônias Kotsuké no Suké, aziago funcionário que motivou a degradação do senhor da Torre de Ako e não se quis eliminar como um cavaleiro, quando a apropriada vingança o cominou. É homem que merece a gratidão de todos os homens, porque despertou preciosas lealdades e foi a negra e necessária ocasião de uma tarefa imortal. Uma centena de romances, de monografias, de teses doutorais e de óperas comemoram o fato - para não falar nas efusões em porcelana, lápis-lazúli venulado, e em laca. Até o versátil celulóide serve-o, uma vez que a História Doutrinal dos Quarenta e Sete Capitães - tal é o seu nome - é a mais repetida inspiração do cinema japonês. A minuciosa glória que essas ardentes atenções afirmam é algo mais que justificável: é imediatamente justa para quem quer que seja.
            Sigo o relato de A. B. Mitford, que omite as contínuas distrações que opera a cor local e prefere atender ao movimento do glorioso episódio. Essa boa ausência de “orientalismo” dá margem a se suspeitar de que se trata de uma versão direta do japonês.

O CORDÃO DESATADO

            Na desvanecida primavera de 1702, o ilustre senhor da Torre de Ako teve de receber e hospedar um enviado imperial. Dois mil e trezentos anos de cortesia (alguns mitológicos) haviam complicado angustiosamente o cerimonial da recepção. O enviado representava o imperador, mas à maneira de alusão ou de símbolo: matiz que não era menos improcedente sublinhar do que atenuar. Para impedir os equívocos muito facilmente fatais, um funcionário da corte de Yedo precedia-o, na qualidade de mestre-de-cerimônias. Longe da comodidade cortesã e condenado a uma villégiature montanhesa que lhe deve ter parecido um desterro, Kira Kotsuké no Suké dava sem jeito as instruções. Às vezes, dilatava até à insolência o tom magistral. Seu discípulo, o senhor da Torre, procurava dissimular esse escárnio. Não sabia replicar, a disciplina vedava-lhe toda a violência. Uma manhã, contudo, o cordão do sapato do mestre desatou-se e este lhe pediu que o reatasse. O cavaleiro fê-lo com humildade, porém com indignação interior. O incivil mestre-de-cerimônias disse-lhe que na realidade era incorrigível, e que somente um campônio seria capaz de amarrar um nó tão torpe. O senhor da Torre puxou da espada e deu-lhe um golpe. O outro fugiu, apenas rubricada a fronte por um fio tênue de sangue... Dias depois, o tribunal militar proferia sentença contra o agressor e o condenava ao suicídio. No pátio central da Torre de Ako, elevaram um estrado de feltro vermelho e nele se mostrou o condenado e lhe entregaram um punhal de ouro e pedras, e ele confessou publicamente sua culpa e se foi despindo até a cintura e abriu o ventre com as duas feridas rituais, e morreu como um samurai, e os espectadores mais afastados não viram sangue porque o feltro era vermelho. Um homem encanecido e cuidadoso decapitou-o com a espada: o conselheiro Kuranosuké, seu padrinho.

O SIMULADOR DA INFÂMIA

            A Torre de Takumi no Kami foi confiscada; seus capitães, debandados; sua família, arruinada e obscurecida; seu nome, vinculado à execração. Um rumor quer que, na mesma noite em que ele se matou, quarenta e sete de seus capitães deliberaram no cume de um monte e planejaram, com toda a precisão, o que se produziu um ano mais tarde. O certo é que devem ter procedido de justificadas demoras e que algum de seus concílios teve lugar, não no cume difícil de uma montanha, mas numa capela em um bosque, medíocre pavilhão de madeira branca, sem outro adorno que a caixa retangular que contém um espelho. Apetecia-lhes a vingança, e a vingança lhes deve ter parecido inalcançável.
            Kira Kotsuké no Suké, o odiado mestre-de-cerimônias, havia fortificado sua casa, e uma nuvem de arqueiros e esgrimistas custodiava seu palanquim. Contava com espias incorruptíveis, pontuais e secretos. Mais do que ninguém, zelavam e vigiavam o presumido capitão dos vingadores: Kuranosuké, o conselheiro. Este percebeu-o por acaso e fundou seu projeto vindicativo sobre esse fato.
            Mudou-se para Kioto, cidade insuperável em todo o império pela cor de seus outonos. Deixou-se arrebatar pelos lupanares, pelas casas de jogo e pelas tabernas. Apesar de suas cãs, conviveu com rameiras e com poetas, e gente ainda pior. Uma vez expulsaram-no da taberna e amanheceu adormecido no umbral, a cabeça tombada sobre um vômito.
            Um homem de Satsuma reconheceu-o e disse, com tristeza e com ira: “Não é este, porventura, aquele conselheiro de Asano Takumi no Kami, que o ajudou a morrer e que, em vez de vingar seu senhor, entrega-se aos deleites e à vergonha? Oh, tu, indigno do nome de Samurai!” Pisou-lhe o rosto adormecido e cuspiu nele. Quando os espiões denunciaram essa passividade, Kotsuké no Suké sentiu um grande alívio.
            Os fatos não pararam aí. O conselheiro despediu a esposa e o mais jovem de seus filhos, e comprou uma mulher num lupanar, famosa infâmia que lhe alegrou o coração e relaxou a temerosa prudência do inimigo. Este acabou por dispensar a metade de seus guardas.
            Numa das noites atrozes do inverno de 1703, os quarenta e sete capitães marcaram encontro num desmantelado jardim dos arredores de Yedo, perto da ponte e da fábrica de baralhos. Iam com as bandeiras de seu senhor. Antes de empreenderem o assalto, advertiram os vizinhos de que não se tratava de violação às leis, mas de operação militar de estrita justiça.

A CICATRIZ

            Dois bandos atacaram o palácio de Kira Kotsuké no Suké. O conselheiro comandou o primeiro, que atacou a porta da frente; o segundo, seu filho mais velho, que completaria dezesseis anos nessa noite. A história sabe os diversos momentos desse pesadelo tão lúcido: a descida arriscada e pendular pelas escadas de corda, o tambor do ataque, a precipitação dos defensores, os arqueiros postados na açotéia, o direto destino das flechas aos órgãos vitais do homem, as porcelanas infamadas de sangue, a morte ardente, que depois é glacial; os impudores e desordens da morte. Nove capitães morreram; os defensores não eram menos valentes e não se quiseram render. Pouco depois da meia-noite, toda a resistência cessou.
            Kira Kotsuké no Suké, razão ignominiosa dessas lealdades, não aparecia. Procuraram-no por todos os cantos desse inquieto palácio, e já desesperavam de o encontrar quando o conselheiro notou que os lençóis de seu leito estavam ainda mornos. Voltaram a procurar e descobriram uma estreita janela dissimulada por um espelho de bronze. Em baixo, de um pequeno pátio sombrio, olhava-os um homem de branco. Uma tênue espada estava em sua mão direita. Quando desceram, o homem entregou-se sem luta. Raiava-lhe a fronte uma cicatriz: velho desenho do aço de Takumi no Kami.
            Então os sangrentos capitães arrojaram-se aos pés do odioso e lhe disseram que eram os oficiais do senhor da Torre, de cuja perdição e de cujo fim ele era culpado, e lhe rogaram que se suicidasse, como o deve fazer um samurai.
            Em vão propuseram esse decoro ao seu ânimo servil. Era homem inacessível à honra; de madrugada tiveram de degolá-lo.

O TESTEMUNHO

            Já satisfeita sua vingança (mas sem ira, e sem agitação, e sem lástima), os capitães dirigiram-se ao templo que guarda as relíquias de seu senhor.
            Em uma caldeira levam a incrível cabeça de Kira Kotsuké no Suké e se revezam para cuidar dela. Atravessam os campos e as províncias, à luz franca do dia. Os homens os bendizem e choram. O príncipe de Sendai quer hospedá-los, mas respondem que há quase dois anos os aguarda seu senhor. Chegam ao escuro sepulcro e oferecem a cabeça do inimigo.
            A Suprema Corte emite a sentença. É o que esperam: lhes é outorgado o privilégio do suicídio. Todos o cumprem, alguns com ardente serenidade, e repousam ao lado do seu senhor. Homens e crianças vêm rezar no sepulcro desses homens tão fiéis.

O HOMEM DE SATSUMA

            Entre os peregrinos que acodem, há um rapaz empoeirado e exausto que deve ter vindo de longe. Prosterna-se diante do monumento de Oishi Kuranosuké, o conselheiro, e diz em voz alta: “Eu te vi jogado à porta de um lupanar de Kioto e não pensei que estavas premeditando a vingança de teu senhor, e te julguei um soldado sem fé e cuspi em teu rosto. Vim te dar uma satisfação”. Disse isso e praticou haraquiri.
            O prior condoeu-se de sua valentia e lhe deu sepultura no lugar em que os capitães repousam.
            Este é o final da história dos quarenta e sete homens leais - salvo que não tem fim, porque os outros homens que não somos leais talvez, mas nunca perderemos de todo a esperança de sê-lo, continuaremos a honrá-los com palavras.

Jorge Luis Borges, “História Universal da Infâmia” (1935).

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