sexta-feira, 28 de outubro de 2022

Delírios - Manoel de Barros

Eu estava encostado na manhã como se um pássaro à toa estivesse encostado na manhã. Me veio uma aparição: Vi a tarde correndo atrás de um cachorro. Eu teria 14 anos. Essa aparição deve ter vindo de minhas origens. Porque nem me lembro de ter visto nenhum cachorro a correr de uma tarde. Mas tomei nota desse delírio. Esses delírios irracionais da imaginação fazem mais bela a nossa linguagem. Tomei nota desse delírio em meu caderno de frases. Àquele tempo eu já guardava delírios. Tive outra visão naquele mês. Mas preciso antes contar as circunstâncias. Eu exercia um pedaço da minha infância encostado à parede da cozinha no quintal de casa. Lá eu brincava de cangar sapos. Havia muitos sapos atrás da cozinha. A gente bem se entendia. Eu reparava que os sapos têm o couro das costas bem parecido com o chão. Além de que eram do chão e encardidos. Um dia eu falei pra mãe: Sapo é um pedaço de chão que pula. A Mãe disse que eu estava meio variado. Que sapo não é um pedaço de chão. Só se fosse no meu delírio. Isso até eu sabia, mas me representava que sapo é um pedaço de chão que pula. Hoje estou maiorzinho e penso no Profeta Jeremias. Ele tanto lamentava de ver a sua Sião destruída e arrasada pelo fogo que em casa lhe veio esta visão: Até as pedras da rua choravam. Ao escrever a um amigo, mais tarde, na paz de sua casa, se lembrou do delírio: até as pedras da rua choravam. Era tão bela a frase porque irracional. Ele disse.
Manoel de Barros, in Memórias Inventadas - A Terceira Infância. Ed. Planeta do Brasil, São Paulo, 2008.