domingo, 13 de novembro de 2022

A face da glória - mito hindu, por Joseph Campbell

      

CAMPBELL: Só a morte está isenta de dificuldade. As pessoas me perguntam: “Você é otimista em relação ao mundo?” E eu digo: “Sim, o mundo é grande exatamente como é. E você não vai consertá-lo. Ninguém jamais conseguiu melhorá-lo. Ele nunca será melhor do que é. É isso mesmo, portanto, aceite-o ou deixe-o. Você não vai corrigi-lo nem aperfeiçoá-lo”.

MOYERS: Isso não conduz a uma atitude francamente passiva diante do mal?

CAMPBELL: Você mesmo é um participante do mal, caso contrário não estaria vivo. O que quer que você faça é mau para alguém. Essa é uma das ironias de toda a criação.

MOYERS: E o que se passa na mitologia com essa ideia de bem e mal, da vida como conflito entre as forças das trevas e as forças da luz?

CAMPBELL: Essa é uma ideia zoroástrica, como tal introduzida no judaísmo e no cristianismo. Em outras tradições, o bem e o mal são relativos à posição em que você se coloca. O que é bom para um é mau para outro. E você desempenha o seu papel, sem cogitar de abandonar o mundo quando percebe quão horrível ele é, e vê que esse horror é apenas o pano de fundo de algo maravilhoso: um mysterium tremendum et fascinans.

“Toda vida é dolorosa” é o primeiro ensinamento budista, e assim é. Não haveria vida sem a implicação da temporalidade, que significa dor – perda, perda, perda. É preciso dizer sim à vida e encará-la como magnificente, do jeito que é; pois foi certamente assim que Deus a concebeu.

MOYERS: Você realmente acredita nisso?

CAMPBELL: Ela é cheia de alegria, tal como é. Não acredito que alguém a tenha concebido assim, mas é assim que ela é. James Joyce tem uma frase inesquecível: “A história é um pesadelo de que estou tentando despertar”. E a maneira de despertar é não ter medo e reconhecer que tudo isso, tal qual é, é a manifestação do horrendo poder contido em toda criação. A finitude das coisas é sempre dolorosa. Mas a dor, em suma, é parte integrante da existência do mundo.

MOYERS: Mas, ao aceitar isso como conclusão derradeira, você abdica de construir qualquer lei ou de empreender qualquer luta ou...

CAMPBELL: Eu não disse isso.

MOYERS: Não é a conclusão lógica que se extrai de aceitar tudo tal como é?

CAMPBELL: Essa não é a conclusão necessária a se extrair. Você poderia dizer: “Vou participar desta vida, vou me alistar no exército, vou à guerra”, e assim por diante.

MOYERS: “Vou fazer o melhor que posso.”

CAMPBELL: “Vou tomar parte no jogo. É um espetáculo maravilhoso, maravilhoso – se bem que dói um pouco.”

Afirmar sem reservas é difícil. Nós sempre afirmamos em termos condicionais. Eu afirmo o mundo sob a condição de que ele seja do jeito que Papai Noel disse que devia ser. Mas afirmá-lo do modo como ele é... isso é que é difícil, e é disso que tratam os rituais. Ritual é participação de grupo no mais hediondo dos atos, que é o ato da vida – especificamente, matar e comer outro ente vivo. Fazemos isso juntos, e assim é a vida. O herói é aquele que participa corajosa e decentemente da vida, no rumo da natureza e não em função do rancor, da frustração e da vingança pessoais.

O âmbito de ação do herói não é o transcendente, mas o aqui e agora, na esfera do tempo, o âmbito do bem e do mal, dos pares de opostos. Sempre que alguém se afasta do transcendente, cai na esfera dos opostos. Comeu-se da árvore do conhecimento do bem e do mal, e também do masculino e feminino, do certo e errado, disso e daquilo, da luz e da treva. Tudo na esfera do tempo é dual: passado e futuro, morto e vivo, ser e não ser. Mas o par supremo, que somos capazes de imaginar, é macho e fêmea, sendo o macho agressivo e a fêmea, receptiva; sendo o macho o guerreiro e a fêmea, o sonhador. Temos aí o reino do amor e o reino da guerra, Eros e Tanatos, como diz Freud.

Heráclito disse que para Deus todas as coisas são boas, certas e justas, mas para o homem algumas são certas, outras não. Uma vez sendo homem, você está na esfera do tempo e das decisões. Um dos problemas da vida consiste em enfrentá-la com a consciência de ambos os termos, ou seja: “Conheço o centro, e sei que bem e mal são apenas aberrações temporais e que, aos olhos de Deus, não há diferenças”.

MOYERS: É a ideia que está nos Upanixades: “Nem macho, nem fêmea, tampouco neutro. Qualquer que seja o corpo que assuma, através desse corpo será servido”.

CAMPBELL: Correto. Jesus diz: “Não julgue, para não ser julgado”. O que significa dizer: Situe-se de volta na posição do Paraíso, antes de pensar em termos de bem e mal. Não é exatamente o que se ouve nos púlpitos. Mas um dos grandes desafios da vida é dizer “sim” àquela pessoa, àquele ato ou àquela condição que você considera a mais abominável.

MOYERS: A mais abominável?

CAMPBELL: Há dois aspectos em coisas dessa ordem. Um é o seu julgamento na esfera da ação, outro é o seu julgamento como observador metafísico. Você não pode dizer que não deveria haver serpentes venenosas, porque essa é a lei da vida. Mas na esfera da ação, ao ver uma serpente venenosa prestes a picar alguém, você a mata. Isso não é dizer “não” à serpente, mas dizer “não” à situação. Há uma passagem maravilhosa no Rig Veda que diz: “Na árvore” – é a árvore da vida, a árvore da sua própria vida “há dois pássaros, amigos ligeiros. Um come o fruto da árvore; o outro, sem comer, observa”. Pois bem, aquele que come o fruto da árvore está matando um fruto. A vida vive da vida, isso é tudo.

                     [A face da glória]

Um breve mito hindu conta a história do grande deus Shiva, o Senhor cuja dança é o universo. Ele tinha como sua consorte a deusa Parvati, filha do rei da montanha. Um monstro veio até ele e disse: “Quero sua mulher como minha amante”. Shiva ficou indignado, e simplesmente abriu seu terceiro olho e, desfechando raios, golpeou a terra; houve fumaça e fogo, e quando a fumaça clareou havia outro monstro, faminto, com os cabelos como os cabelos de um leão, voando nas quatro direções. O primeiro monstro viu que o monstro faminto estava prestes a devorá-lo. Pois bem, o que você faz quando se encontra numa situação como essa? A cautela convencional aconselha colocar-se à mercê da divindade. Então o monstro disse: “Shiva, eu me rendo à sua mercê”. Bem, existem regras para este jogo divino. Quando alguém se rende à sua mercê, então você deve mostrar-se misericordioso.

Então Shiva disse: “Eu lhe ofereço minha misericórdia. Monstro faminto, não o devore”.

“Bem”, disse o monstro faminto, “que devo fazer? Estou com fome. Você me fez faminto, para devorar a este monstro aqui.”

“Bem”, disse Shiva, “devore-se a si mesmo”.

Então o monstro faminto começou pelos próprios pés e continuou a mastigar, a mastigar – e essa é uma imagem da vida que vive da vida. Por fim, nada restou do monstro senão sua face. Shiva olhou para essa face e disse: “Nunca vi uma demonstração mais eloquente do que essa sobre o que é a vida. Vou chamar você de Kirtimukha – a face da glória”. Você verá essa máscara, essa face da glória, nos portais dos templos de Shiva e dos templos budistas. Shiva disse à face: “Aquele que não se prostrar diante de você não será digno de vir até mim”.

Você deve dizer “sim” ao milagre da vida, tal como é, e não sob a condição de que ele siga as suas regras. Caso contrário, você nunca chegará à dimensão metafisica.

Certa vez, na Índia, pensei que gostaria de conhecer um grande guru ou mestre, face a face. Assim, dirigi-me a um celebrado mestre chamado Sri Krishna Menon, e a primeira coisa que ele me disse foi: “Você tem alguma pergunta?”

O mestre, nessa tradição, sempre responde a perguntas. Ele jamais lhe diz qualquer coisa que você não esteja apto a ouvir. Então eu disse: “Sim, eu tenho uma pergunta. Já que no pensamento hindu tudo no universo é manifestação da própria divindade, como poderei dizer não a qualquer coisa no mundo? Como poderei dizer ‘não’ à brutalidade, à estupidez, à vulgaridade, à incúria?”

E ele respondeu: “Por você e por mim, o certo é dizer sim”. 

Então mantivemos uma maravilhosa conversação sobre o tema da afirmação de todas as coisas. Isso confirmou a sensação que eu havia tido: quem somos para julgar? Creio que esse é, também, um dos grandes ensinamentos de Jesus.

MOYERS: Na doutrina clássica cristã, o mundo material é para ser desprezado, e a vida é para ser redimida no além-mundo, no Paraíso, onde receberemos nossas recompensas. Mas você diz que, ao afirmar o que deploro, estou afirmando verdadeiramente este mundo, que representa a nossa eternidade, no momento.

CAMPBELL: Sim, é o que estou dizendo. A eternidade não é um tempo vindouro. Não é sequer um tempo de longa duração. Eternidade não tem nada a ver com tempo. Eternidade é aquela dimensão do aqui e agora que todo pensar em termos temporais elimina. Se você não a atingir aqui, não vai atingi-Ia em parte alguma. O problema com o Paraíso é que você vai ter uma vida tão boa, lá, que sequer vai pensar em eternidade. Você vai simplesmente experimentar o interminável deleite, na visão beatífica de Deus. Mas experimentar a eternidade aqui mesmo e agora, em todas as coisas, não importa se encaradas como boas ou más, esta é a função da vida.

MOYERS: Assim é.

CAMPBELL: Assim é.

Extraído de CAMPBELL, Joseph. O poder do mito, pág. 68-71, 34ª edição, Palas Athena Editora, São Paulo, 2021.

sexta-feira, 28 de outubro de 2022

Delírios - Manoel de Barros

Eu estava encostado na manhã como se um pássaro à toa estivesse encostado na manhã. Me veio uma aparição: Vi a tarde correndo atrás de um cachorro. Eu teria 14 anos. Essa aparição deve ter vindo de minhas origens. Porque nem me lembro de ter visto nenhum cachorro a correr de uma tarde. Mas tomei nota desse delírio. Esses delírios irracionais da imaginação fazem mais bela a nossa linguagem. Tomei nota desse delírio em meu caderno de frases. Àquele tempo eu já guardava delírios. Tive outra visão naquele mês. Mas preciso antes contar as circunstâncias. Eu exercia um pedaço da minha infância encostado à parede da cozinha no quintal de casa. Lá eu brincava de cangar sapos. Havia muitos sapos atrás da cozinha. A gente bem se entendia. Eu reparava que os sapos têm o couro das costas bem parecido com o chão. Além de que eram do chão e encardidos. Um dia eu falei pra mãe: Sapo é um pedaço de chão que pula. A Mãe disse que eu estava meio variado. Que sapo não é um pedaço de chão. Só se fosse no meu delírio. Isso até eu sabia, mas me representava que sapo é um pedaço de chão que pula. Hoje estou maiorzinho e penso no Profeta Jeremias. Ele tanto lamentava de ver a sua Sião destruída e arrasada pelo fogo que em casa lhe veio esta visão: Até as pedras da rua choravam. Ao escrever a um amigo, mais tarde, na paz de sua casa, se lembrou do delírio: até as pedras da rua choravam. Era tão bela a frase porque irracional. Ele disse.
Manoel de Barros, in Memórias Inventadas - A Terceira Infância. Ed. Planeta do Brasil, São Paulo, 2008.