domingo, 27 de março de 2011

Conservação das lembranças - Julio Cortázar


Os famas para conservar suas lembranças tratam de embalsamá-las da seguinte forma: após fixada a lembrança com cabelos e sinais, embrulham-na da cabeça aos pés num lençol preto e a colocam contra a parede da sala, com um cartãozinho que diz: ‘Excursão a Quilmes’, ou ‘Frank Sinatra’.

Os cronópios, em compensação, esses seres desordenados e frouxos, deixam as lembranças soltas pela casa, entre gritos alegres, e andam no meio delas e quando passa alguma correndo, acariciam-na com suavidade e lhe dizem: ‘Não vá se machucar’, e também ‘Cuidado com os degraus’. É por isso que as casas dos famas são arrumadas e silenciosas, enquanto nas dos cronópios há uma grande agitação e portas que batem. Os vizinhos sempre se queixam dos cronópios, enquanto os famas mexem a cabeça compreensivamente e vão ver se os cartõezinhos estão todos no lugar.

Julio CORTÁZAR, in "Histórias de cronópios e de famas"

domingo, 20 de março de 2011

Peço que não faça como a gente vulgar, que é sempre reles - Fernando Pessoa

Ophelinha:
Agradeço a sua carta. Ella trouxe-me pena e allivio ao mesmo tempo. Pena, porque estas cousas fazem sempre pena; allivio, porque, na verdade, a unica solução é essa - o não prolongarmos mais uma situação que não tem já a justificação do amor, nem de uma parte nem de outra. Da minha, ao menos, fica uma estima profunda, uma amisade inalteravel. Não me nega a Ophelinha outro tanto, não é verdade?

Nem a Ophelinha, nem eu, temos culpa nisto. Só o Destino terá culpa, se o Destino fosse gente, a quem culpas se attribuissem.

O Tempo, que envelhece as faces e os cabellos, envelhece tambem, mas mais depressa ainda, as affeições violentas. A maioria da gente, porque é estupida, consegue não dar por isso, e julga que ainda ama porque contrahiu o habito de se sentir a amar. Se assim não fosse, não havia gente feliz no mundo. As creaturas superiores, porém, são privadas da possibilidade d'essa illusão, porque nem podem crer que o amor dure, nem, quando o sentem acabado, se enganam tomando por elle a estima, ou a gratidão, que elle deixou.

Estas cousas fazem soffrer, mas o soffrimento passa. Se a vida, que é tudo, passa por fim, como não hão de passar o amor e a dor, e todas as mais cousas, que não são mais que partes da vida?

Na sua carta é injusta para commigo, mas comprehendo e desculpo; decerto a escreveu com irritação, talvez mesmo com magua, mas a maioria da gente - homens ou mulheres - escreveria, no seu caso, num tom ainda mais acerbo, e em termos ainda mais injustos. Mas a Ophelinha tem um feitio optimo, e mesmo a sua irritação não consegue ter maldade. Quando casar, se não tiver a felicidade que merece, por certo que não será sua a culpa.

Quanto a mim...

O amor passou. Mas conservo-lhe uma affeição inalteravel, e não esquecerei nunca - nunca, creia - nem a sua figurinha engraçada e os seus modos de pequeneina, nem a sua ternura, a sua dedicação, a sua indole amoravel. Pode ser que me engane, e que estas qualidades, que lhe attribúo, fossem uma illusão minha; mas nem creio que fossem, nem, a terem sido, seria desprimor para mim que lh'as attribuisse.

Não sei o que quer que lhe devolva - cartas ou que mais. Eu preferia não lhe devolver nada, e conservar as suas cartinhas como memoria viva de uma passado morto, como todos os passados; como alguma cousa de commovedor numa vida, como a minha, em que o progresso nos annos é par do progresso na infelicidade e na desillusão.

Peço que não faça como a gente vulgar, que é sempre reles; que não me volte a cara quando passe por si, nem tenha de mim uma recordação em que entre o rancor. Fiquemos, um perante o outro, como dois conhecidos desde a infancia, que se amaram um pouco quando meninos, e, embora na vida adulta sigam outras affeições e outros caminhos, conservam sempre, num escaninho da alma, a memoria profunda do seu amor antigo e inutil.

Que isto de "outras affeições" e de "outros caminhos" é consigo, Ophelinha, e não commigo. O meu destino pertence a outra Lei, de cuja existencia a Ophelinha nem sabe, e está subordinado cada vez mais à obediência a Mestres que não permittem nem perdoam.

Não é necessario que comprehenda isto. Basta que me conserve com carinho na sua lembrança, como eu, inalteravelmente, a conservarei na minha.

Fernando

29/XI/1920


Cartas de Amor de Fernando Pessoa, Organização, posfácio e notas de David Mourão-Ferreira, Preâmbulo e estabelecimento do texto de Maria da Graça Queiroz, Edições Ática, Lisboa 1978, pp. 131-133.