sábado, 18 de novembro de 2017

Um doutor - Manoel de Barros

Um doutor veio formado de São Paulo. Almofadinha. Suspensórios, colete, botina preta de presilhas. E um trejeito no andar de pomba rolinha. No verbo, diga-se de logo, usava naftalina. Por acaso, era um pernóstico no falar. Pessoas simples da cidade lhe admiravam a pose de doutor. Eu só via o casco. Fomos de tarde no Bar O Ponto. Ele, meu pai e este que vos fala. Este que vos fala era um rebelde adolescente. De pronto o Doutor falou pra meu pai: Meus parabéns Seo João, parece que seu filho agora endireitou! E meu pai: Ele nunca foi torto. Pintou um clima de urubu com mandioca entre nós. O doutor pisou no rabo, eu pensei. Ele ainda perguntou: E o comunismo dele? Está quarando na beira do rio entre as capivaras, o pai respondeu. O doutor se levantou da mesa e saiu com seu andar de vespa magoada.
       BARROS, Manoel de. Memórias inventadas - A segunda infância. Ed. Planeta, São Paulo, 2006.

Sobre importâncias [2] - Manoel de Barros

Um fotógrafo-artista me disse outra vez: Veja que pingo de sol no couro de um lagarto é para nós mais importante do que o sol inteiro no corpo do mar. Falou mais: que a importância de uma coisa não se mede com fita métrica nem com balanças nem com barômetros etc. Que a importância de uma coisa há que ser medida pelo encantamento que a coisa produza em nós. Assim um passarinho nas mãos de um criança é mais importante para ela do que a Cordilheira dos Andes. Que o osso é mais importante para o cachorro do que uma pedra de diamante. E um dente de macaco da era terciária é mais importante para os arqueólogos do que a Torre Eifel. (Veja que só um dente de macaco!) Que uma boneca de trapos que abre e fecha os olhinhos azuis nas mãos de uma criança é mais importante para ela do que o Empire State Building. Que o cu de uma formiga é mais importante para o poeta do que uma Usina Nuclear. Sem precisar medir o ânus da formiga. Que o canto das águas e das rãs nas pedras é mais importante para os músicos do que os ruídos dos motores da Fórmula 1. Há um desagero em mim de aceitar essas medidas. Porém não sei se isso é um defeito do olho ou da razão. Se é defeito da alma ou do corpo. Se fizerem algum exame mental em mim por tais julgamentos, vão encontrar que eu gosto mais de conversar sobre restos de comida com as moscas do que com homens doutos.
              BARROS, Manoel de. Memórias inventadas - A segunda infância, Ed. Planeta, São Paulo, 2006.