quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

O guardador de rebanhos - Fernando Pessoa (Alberto Caeiro)

I

Eu nunca guardei rebanhos,
Mas é como se os guardasse.
Minha alma é como um pastor,
Conhece o vento e o sol
E anda pela mão das Estações
A seguir e a olhar.
Toda a paz da Natureza sem gente
Vem sentar-se a meu lado.
Mas eu fico triste como um pôr de sol
Para a nossa imaginação,
Quando esfria no fundo da planície
E se sente a noite entrada
Como uma borboleta pela janela.

Mas a minha tristeza é sossego
Porque é natural e justa
E é o que deve estar na alma
Quando já pensa que existe
E as mãos colhem flores sem ela dar por isso.

Como um ruído de chocalhos
Para além da curva da estrada,
Os meus pensamentos são contentes.
Só tenho pena de saber que eles são contentes,
Porque, se o não soubesse,
Em vez de serem contentes e tristes,
Seriam alegres e contentes.

Pensar incomoda como andar à chuva
Quando o vento cresce e parece que chove mais.

Não tenho ambições nem desejos
Ser poeta não é uma ambição minha
É a minha maneira de estar sozinho.

E se desejo às vezes
Por imaginar, ser cordeirinho
(Ou ser o rebanho todo
Para andar espalhado por toda a encosta
A ser muita cousa feliz ao mesmo tempo),
É só porque sinto o que escrevo ao pôr do sol,
Ou quando uma nuvem passa a mão por cima da luz
E corre um silêncio pela erva fora.
Quando me sento a escrever versos
Ou, passeando pelos caminhos ou pelos atalhos,
Escrevo versos num papel que está no meu pensamento,
Sinto um cajado nas mãos
E vejo um recorte de mim
No cimo dum outeiro,
Olhando para o meu rebanho e vendo as minhas idéias,
Ou olhando para as minhas idéias e vendo o meu rebanho,
E sorrindo vagamente como quem não compreende o que se diz
E quer fingir que compreende.

Saúdo todos os que me lerem,
Tirando-lhes o chapéu largo
Quando me vêem à minha porta
Mal a diligência levanta no cimo do outeiro.
Saúdo-os e desejo-lhes sol,
E chuva, quando a chuva é precisa,
E que as suas casas tenham
Ao pé duma janela aberta
Uma cadeira predileta
Onde se sentem, lendo os meus versos.
E ao lerem os meus versos pensem
Que sou qualquer coisa natural —
Por exemplo, a árvore antiga
À sombra da qual quando crianças
Se sentavam com um baque, cansados de brincar,
E limpavam o suor da testa quente
Com a manga do bibe riscado.
...

domingo, 22 de dezembro de 2013

Poema dos dons / Poema de los dones - Jorge Luis Borges


Ninguém rebaixe a lágrima ou rejeite
Esta declaração da maestria
De Deus, que com magnífica ironia
Deu-me a um só tempo os livros e a noite.

Da cidade de livros tornou donos
Estes olhos sem luz, que só concedem
Em ler entre as bibliotecas dos sonhos
Insensatos parágrafos que cedem

As alvas a seu afã. Em vão o dia
Lhes prodiga seus livros infinitos,
Árduos como os árduos manuscritos
Que pereceram em Alexandria.

De fome e de sede (narra uma história grega)
Morre um rei entre fontes e jardins;
Eu fatigo sem rumo os confins
Dessa alta e funda biblioteca cega.

Enciclopédias, atlas, o Oriente
E o Ocidente, centúrias, dinastias,
Símbolos, cosmos e cosmogonias
Brindam os muros, mas inutilmente.

Em minha sombra, o oco breu com desvelo
Investigo, o báculo indeciso,
Eu, que me figurava o Paraíso
Tendo uma biblioteca como modelo.

Algo, que por certo não se vislumbra
No termo acaso, rege estas coisas;
Outro já recebeu em outras nebulosas
Tardes os muitos livros e a penumbra.

Ao errar pelas lentas galerias
Sinto às vezes com vago horror sagrado
Que sou o outro, o morto, habituado
Aos mesmos passos e nos mesmos dias.

Qual de nós dois escreve este poema
De uma só sombra e de um eu plural?
O nome que me assina é essencial,
Se é indiviso e uno esse anátema?

Groussac [1] ou Borges, olho este querido
Mundo que se deforma e que se apaga
Numa empalidecida cinza vaga
Que se parece ao sonho e ao olvido.


POEMA DE LOS DONES
                                                Jorge Luis Borges

Nadie rebaje a lágrima o reproche
Esta declaración de la maestria
De Dios, que com magnífica ironia
Me dio a la vez los libros y la noche.

De esta ciudad de libros hizo dueños
A unos ojos sin luz, que sólo pueden
Leer en las bibliotecas de los sueños
Los insensatos párrafos que ceden

Las albas a su afán. En vano el día
Les prodiga sus libros infinitos,
Arduos como los arduos manuscritos
Que perecieron en Alejandría.

De hambre y de sed (narra una historia griega)
Muere un rey entre fuentes y jardines;
Yo fatigo sin rumbo los confines
De esta alta y honda biblioteca ciega.

Enciclopedias, atlas, el Oriente
Y el Ocidente, siglos, dinastias,
Símbolos, cosmos y cosmogonías
Brindan los muros, pero inutilmente.

Lento en mi sombra, la penumbra hueca
Exploro com el báculo indeciso,
Yo, que me figuraba el Paraíso
Bajo la especie de una biblioteca.

Algo, que ciertamente no se nombra
Com la palabra azar, rige estas cosas;
Outro ya recibió en otras borrosas
Tardes los muchos libros y la sombra.

Al errar por las lentas galerías
Suelo sentir com vago horror sagrado
Que soy el outro, el muerto, que habrá dado
Los mismos pasos en los mismos días.

Cual de los dos escribe este poema
De uno yo plural y de una sola sombra?
Qué importa la palabra que me nombra
Si es indiviso y uno el anatema?

Groussac [1] o Borges, miro este querido
Mundo que se deforma y que se apaga
En una pálida ceniza vaga
Que se parece al sueño y al olvido.

Jorge Luis Borges, in “O fazedor” (1960)

[1] Paul Groussac também foi diretor da Biblioteca Nacional da Argentina. Também era cego como Borges.

quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

Arte poética - Jorge Luis Borges

Mirar el río hecho de tiempo y agua
y recordar que el tiempo es otro río,
saber que nos perdemos como el río
y que los rostros pasan como el agua.

Sentir que la vigilia es otro sueño
que sueña no soñar y que la muerte
que teme nuestra carne es esa muerte
de cada noche, que se llama sueño.

Ver en el día o en el año un símbolo
de los días del hombre y de sus años,
convertir el ultraje de los años
en una música, un rumor y un símbolo,

ver en la muerte el sueño, en el ocaso
un triste oro, tal es la poesía
que es inmortal y pobre. La poesía
vuelve como la aurora y el ocaso.

A veces en las tardes una cara
nos mira desde el fondo de un espejo;
el arte debe ser como ese espejo
que nos revela nuestra propia cara.

Cuentan que Ulises, harto de prodigios,
lloró de amor al divisar su Itaca
verde y humilde. El arte es esa Itaca
de verde eternidad, no de prodigios.

También es como el río interminable
que pasa y queda y es cristal de un mismo
Heráclito inconstante, que es el mismo
y es otro, como el río interminable.

Jorge Luis Borges, in El hacedor, 1960

quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

O jardim de veredas que se bifurcam - Jorge Luis Borges

                    A Victoria Ocampo

          Na página 22 da História da Guerra da Europa, de Liddell Hart, lê-se que uma ofensiva de treze divisões britânicas (apoiadas por mil e quatrocentas peças de artilharia) contra a linha Serre-Montauban tinha sido planeada para o dia vinte e quatro de julho de 1916 e teve de se adiar para a manhã do dia vinte e nove. Foram as chuvas torrenciais (anota o capitão Liddell Hart) que provocaram esse atraso - nada significativo, certamente. A declaração seguinte, ditada, revista e assinada pelo doutor Yu Tsun, antigo catedrático de inglês na Hochschule de Tsingtao, lança uma insuspeitada luz sobre o caso. Faltam as duas páginas iniciais:
          “... e pendurei o fone. Imediatamente após, reconheci a voz que respondera em alemão. Era a do capitão Richard Madden. Madden, no apartamento de Viktor Runeberg, significava o fim das nossas ansiedades e - mas isto parecia muito secundário, ou devia parecer-me - também das nossas vidas. Queria dizer que Runeberg fora preso, ou assassinado (1). Antes que se pusesse o sol desse dia, eu incorreria na mesma sorte. Madden era implacável. Melhor dizendo, era obrigado a ser implacável. Irlandês às ordens da Inglaterra, homem acusado de moleza e talvez até de traição, como não iria abraçar e agradecer este milagroso favor: a descoberta, a captura e quiçá a morte, de dois agentes do Império Alemão? Subi ao meu quarto; absurdamente fechei a porta à chave e deitei-me de costas na estreita cama de ferro. Na janela viam-se os telhados de sempre e o sol nublado das seis. Pareceu-me incrível que esse dia sem premonições nem símbolos fosse o da minha morte implacável. Apesar de ter morrido o meu pai, apesar de eu ter passado a infância num simétrico jardim de Hai Feng, ia morrer agora? Depois refleti que todas as coisas sucedem a uma pessoa precisamente agora. Passam séculos e séculos e só no presente acontecem os fatos; há inúmeros homens no ar, na terra e no mar, e tudo o que realmente sucede, sucede a mim... A quase intolerável lembrança do rosto cavalar de Madden aboliu estas divagações. Em meio a meu ódio e meu terror (agora não me interessa falar de terror: agora que enganei Richard Madden, agora que a minha garganta anseia pela corda) pensei que esse guerreiro tumultuoso e sem dúvida feliz não suspeitava que eu possuía o Segredo. O nome do lugar preciso do novo parque de artilharia britânico sobre o Ancre. Uma ave rasgou o céu pardo e cegamente traduzi-o por um aeroplano e esse aeroplano por muitos (no céu francês) aniquilando o parque de artilharia com bombas verticais. Se minha boca, antes que a desfizesse uma bala, pudesse gritar o nome de modo que o ouvissem na Alemanha... Minha voz humana era muito fraca. Como fazê-la chegar ao ouvido do Chefe? Ao ouvido daquele homem doente e odioso, que de Runeberg e de mim só sabia que estávamos em Staffordshire e que em vão esperava notícias nossas no seu árido gabinete de Berlim, a examinar infinitamente os jornais... Disse em voz alta: ‘Devo fugir’. Levantei-me sem ruído, numa inútil perfeição de silêncio, como se já estivesse sob a mira de Madden. Uma coisa - talvez a simples ostentação de provar que os meus recursos eram nulos - fez-me revistar os bolsos. Encontrei o que sabia que iria encontrar. O relógio norte-americano, a corrente de níquel e a moeda quadrangular, o chaveiro com as comprometedoras chaves inúteis do apartamento de Runeberg, a caderneta, uma carta que resolvi destruir imediatamente (e que não destruí), o passaporte falso, uma coroa, dois xelins e alguns pennies, o lápis azul-vermelho, o lenço, o revólver com uma bala. Absurdamente o empunhei e sopesei para me dar coragem. Pensei vagamente que um tiro se pode ouvir muito longe. Em dez minutos o meu plano amadureceu. A lista telefônica deu-me o nome da única pessoa capaz de transmitir a notícia: vivia num subúrbio de Fenton, a menos de meia hora de trem.
          “Sou um homem covarde. Agora o digo, agora que levei a bom termo um plano que ninguém deixará de qualificar de arriscado. Sei que foi terrível a sua execução. Não o fiz pela Alemanha, não. Nada me importa um país bárbaro que me obrigou à abjeção de me tornar espião. Além disso, sei de um homem da Inglaterra - um homem modesto - que para mim não é menos que Goethe. Não falei com ele mais de uma hora, mas durante uma hora foi Goethe... Fi-lo porque sentia que o Chefe tinha pouca consideração pela gente da minha raça - pelos inumeráveis antepassados que em mim confluem. Queria provar-lhe que um amarelo podia salvar os seus exércitos. Além disso, tinha de fugir do capitão. As suas mãos e a sua voz podiam bater à minha porta a qualquer momento. Vesti-me sem ruído, disse-me adeus no espelho, desci, esquadrinhei a rua tranquila e saí. A estação não ficava muito longe da casa, mas achei preferível apanhar um carro. Argumentei que assim corria menos perigo de ser reconhecido; o fato é que na rua deserta me sentia visível e vulnerável, infinitamente. Lembro-me de ter dito ao motorista que parasse um pouco antes da entrada principal. Saí do carro com lentidão voluntária e quase penosa; ia à aldeia de Ashgrove, mas tirei bilhete para uma estação mais longe. O trem saía daí a pouquíssimos minutos, às oito e cinqüenta. Apressei-me; o seguinte partiria às nove e meia. Não havia quase ninguém na plataforma. Percorri os vagões: lembro-me de uns lavradores, uma mulher de luto, um jovem que lia com fervor os Anais de Tácito, um soldado ferido e feliz. O trem, finalmente, partiu. Um homem que reconheci correu em vão até o limite da plataforma. Era o capitão Richard Madden. Aniquilado, trêmulo, encolhi-me na outra ponta do banco, longe do temido vidro da janela.
          “Dessa aniquilação passei a uma felicidade quase abjeta. Disse para comigo que já estava metido no duelo e que ganhara o primeiro assalto, ao enganar, nem que fosse por quarenta minutos, nem que fosse por um favor do acaso, o ataque do meu adversário. Argumentei que essa vitória mínima anunciava a vitória total. Concluí que não era mínima, dado que sem essa diferença preciosa que o horário dos comboios me oferecia, eu estaria na prisão, ou morto. Argumentei (de modo não menos sofístico) que a minha covarde felicidade provava que eu era homem capaz de levar a aventura a bom termo. Desta fraqueza tirei forças que não me abandonaram. Prevejo que o homem se há de resignar dia a dia a tarefas cada vez mais atrozes; em breve não haverá senão guerreiros e bandidos; dou-lhes este conselho: ‘O executor de uma empresa atroz tem de imaginar que já a cumpriu, tem de se impor um futuro que seja irrevogável como o passado’. Assim procedi eu, enquanto os meus olhos de homem já morto registavam o fluir daquele dia que era talvez o último, e a noite a espalhar-se. O trem corria com doçura, por entre freixos. Parou, quase no meio do campo. Ninguém gritou o nome da estação. ‘Ashgrove?’ perguntei a uns rapazinhos na plataforma. ‘Ashgrove’, responderam. Desci.
          “Uma lâmpada iluminava a plataforma, mas os rostos dos meninos ficavam na zona de sombra. Um me perguntou: ‘O senhor vai à casa do doutor Stephen Albert?’ Sem esperar por resposta, outro disse: ‘A casa fica longe daqui, mas o senhor não se perde se for por esse caminho à esquerda e em cada encruzilhada do caminho virar à esquerda’. Atirei-lhes uma moeda (a última), desci uns degraus de pedra e entrei no solitário caminho. Este, lentamente, era a descer. Era de terra elementar, por cima dele juntavam-se os ramos, e a lua baixa e circular parecia acompanhar-me.
         “Por um instante, pensei que Richard Madden tinha de qualquer modo penetrado no meu desesperado desígnio. Em breve compreendi que era impossível. O conselho de virar sempre à esquerda fez-me lembrar que tal era o procedimento comum para descobrir o pátio central de certos labirintos. Alguma coisa entendo de labirintos: não é em vão que sou bisneto daquele Tsui Pên que foi governador de Yunan e que renunciou ao poder temporal para escrever um romance que fosse ainda mais populoso que o Hung Lu Meng e para edificar um labirinto em que se perdessem todos os homens. Treze anos dedicou a estes heterogêneos esforços, mas a mão de um forasteiro assassinou-o e o seu romance não fazia sentido e ninguém encontrou o labirinto. Foi debaixo de árvores inglesas que meditei nesse labirinto perdido: imaginei-o inviolado e perfeito no cume secreto de uma montanha, imaginei-o apagado por arrozais ou debaixo da água, imaginei-o infinito, não já de quiosques oitavados e de caminhos em voltas, mas de rios e províncias e reinos... Pensei num labirinto de labirintos, num sinuoso labirinto crescente que abrangesse o passado e o porvir e que envolvesse de algum modo os astros. Absorto nestas ilusórias imagens, esqueci do meu destino de perseguido. Senti-me, por um tempo indeterminado, conhecedor abstrato do mundo. O vago e vivo campo, a Lua, os restos da tarde, agiram sobre mim; igualmente o declive que eliminava qualquer possibilidade de cansaço. A tarde estava íntima, infinita. O caminho descia e bifurcava-se, por entre os prados já confusos. Uma música aguda e como que silábica aproximava-se e afastava-se no vaivém do vento, enfraquecida pelas folhas e pela distância. Pensei que um homem pode ser inimigo de outros homens, de outros momentos de outros homens, mas não de um país: não de vaga-lumes, palavras, jardins, cursos de água, poentes. Cheguei assim a um alto portão enferrujado. Por entre as grades decifrei uma alameda e uma espécie de pavilhão. Compreendi logo duas coisas, a primeira trivial, a segunda quase incrível: a música vinha do pavilhão, e a música era chinesa. Por isso, eu aceitara-a plenamente, sem lhe prestar atenção. Não me lembro se havia uma sineta ou uma campainha ou se chamei batendo palmas. A contínua crepitação da música prosseguiu.
          “Mas do fundo da íntima casa uma lanterna aproximava-se: uma lanterna que os troncos riscavam e às vezes anulavam, uma lanterna de papel, que tinha a forma dos tambores e a cor da Lua. Trazia-a um homem alto. Não lhe vi o rosto, porque a luz me cegava. Abriu o portão e disse lentamente em meu idioma:
          “- Vejo que o piedoso Hsi Pêng se empenha em atenuar a minha solidão. Sem dúvida o senhor desejará ver o jardim?
          “Reconheci o nome de um dos nossos cônsules e repeti desconcertado:
          “- O jardim?
          “- O jardim dos caminhos que se bifurcam.
         “Algo se agitou na minha memória e pronunciei com incompreensível segurança:
          “- O jardim do meu antepassado Tsui Pên.
          “- Seu antepassado? Seu ilustre antepassado? Entre.
          “O úmido caminho ziguezagueava como os da minha infância. Chegamos a uma biblioteca de livros orientais e ocidentais. Reconheci, encadernados em seda amarela, alguns tomos manuscritos da Enciclopédia Perdida que dirigiu o Terceiro Imperador da Dinastia Luminosa e que nunca foi dada ao prelo. O disco do gramofone rodava junto de uma fênix de bronze. Lembro-me também de um vaso famille rose e de outro, anterior de muitos séculos, dessa cor azul que os nossos artífices copiaram dos oleiros da Pérsia...
          “Stephen Albert observava-me, sorridente. Era (já o disse) muito alto, de feições afiladas, de olhos cinzentos e barba grisalha. Havia nele algo de sacerdote e também de marinheiro; depois contou-me que fora missionário em Tientsin ‘antes de aspirar a sinólogo’.
          “Sentamo-nos; eu num baixo e comprido divã; ele de costas para a janela e para um alto relógio circular. Calculei que não menos de uma hora demoraria a chegar o meu perseguidor, Richard Madden. A minha determinação irrevogável podia esperar.
          “- Espantoso destino o de Tsui Pên - disse Stephen Albert. – Governador da sua província natal, douto em astronomia, em astrologia e na interpretação infatigável dos livros canônicos, xadrezista, famoso poeta e calígrafo: tudo abandonou para compor um livro e um labirinto. Renunciou aos prazeres da opressão, da justiça, do numeroso leito, dos banquetes e até da erudição e enclausurou-se durante treze anos no Pavilhão da Límpida Solidão. À sua morte, os herdeiros não encontraram senão manuscritos caóticos. A família, como porventura o senhor não ignora, quis entregá-los ao fogo; mas o seu testamenteiro - um monge taoísta ou budista - insistiu na publicação.
          “- Nós do sangue de Tsui Pên - repliquei - continuamos a execrar esse monge. A publicação foi insensata. O livro é um acervo indeciso de rascunhos contraditórios. Examinei-o umas vezes: no terceiro capítulo morre o herói, no quarto está vivo. Quanto à outra empresa de Tsui Pên, ao seu Labirinto...
          “- Aqui está o labirinto – disse, apontando-me uma alta escrivaninha lacada.
          “- Um labirinto de marfim! - exclamei. - Um labirinto mínimo...
          “- Um labirinto de símbolos - corrigiu. - Um invisível labirinto de tempo. A mim, bárbaro inglês, foi dado revelar esse mistério diáfano. Ao fim de mais de cem anos, os pormenores são irrecuperáveis, mas não é difícil conjeturar o que sucedeu. Tsui Pên teria dito uma vez: ‘Retiro-me para escrever um livro’. E outra: ‘Retiro-me para construir um labirinto’. Todos imaginaram duas obras; ninguém pensou que o livro e o labirinto eram um único objeto. O Pavilhão da Límpida Solidão erguia-se no centro de um jardim talvez intrincado; o fato pode ter sugerido aos homens um labirinto físico. Tsui Pên morreu; ninguém, nas amplas terras que foram suas, deu com o labirinto; a confusão do romance sugeriu-me que era esse o labirinto. Houve duas circunstâncias que me deram a correta solução do problema. Uma: a curiosa lenda de que Tsui Pên se propusera um labirinto que fosse rigorosamente infinito. Outra: um fragmento de uma carta que descobri.
          “Albert levantou-se. Por uns instantes, virou-me as costas; abriu uma gaveta da áurea e enegrecida escrivaninha. Voltou com um papel que fora carmesim; agora um quadriculado rosado e tênue. Era justa a fama caligráfica de Tsui Pên. Li com incompreensão e fervor estas palavras que com minucioso pincel redigira um homem do meu sangue: ‘Deixo aos vários porvires (não a todos) o meu jardim dos caminhos que se bifurcam’.
          “Devolvi a folha em silêncio. Albert prosseguiu:
          “- Antes de exumar esta carta, eu perguntara-me de que maneira pode um livro ser infinito. Não conjeturei outro procedimento senão o de um volume cíclico, circular. Um volume cuja última página fosse idêntica à primeira, com a possibilidade de continuar indefinidamente. Lembrei-me também da noite que está no centro das Mil e uma Noites, quando a rainha Xerezade (por uma mágica distração do copista) se põe a relatar textualmente a história das Mil e uma Noites, com o risco de chegar outra vez à noite na qual está fazendo o relato, e assim por diante até o infinito. Imaginei também uma obra platônica, hereditária, transmitida de pai para filho, em que cada novo indivíduo acrescentasse um capítulo ou corrigisse com piedoso cuidado a página dos antepassados. Estas conjeturas distraíram-me; mas nenhuma parecia corresponder, nem sequer de um modo longínquo, aos contraditórios capítulos de Tsui Pên. No meio desta perplexidade, enviaram-me de Oxford o manuscrito que o senhor acabou de examinar. Detive-me, como é natural, na frase: ‘Deixo aos vários porvires (não a todos) o meu jardim dos caminhos que se bifurcam’. Quase de imediato compreendi; o jardim dos caminhos que se bifurcam era o romance caótico; a frase vários porvires (não a todos) sugeriu-me a imagem da bifurcação no tempo, e não no espaço. A releitura geral da obra confirmou esta teoria. Em todas as ficções, sempre que um homem se defronta com diversas alternativas, opta por uma e elimina as outras; na do quase inextricável Tsui Pên, opta - simultaneamente - por todas. Cria, assim, diversos porvires, diversos tempos, que também proliferam e se bifurcam. Daí as contradições do romance. Fang, digamos, tem um segredo, um desconhecido bate à sua porta, Fang resolve matá-lo. Naturalmente, há vários desenlaces possíveis. Fang pode matar o intruso, o intruso pode matar Fang, ambos podem salvar-se, ambos podem morrer, etc. Na obra de Tsui Pên, acontecem todos os desenlaces; cada um é o ponto de partida de outras bifurcações. Às vezes os caminhos desse labirinto convergem: por exemplo, o senhor chega a esta casa, mas num dos passados possíveis o senhor é meu inimigo, noutro meu amigo. Se o senhor se resignar à minha pronúncia incurável, leremos umas páginas.
          “Seu rosto, no vívido círculo da lâmpada, era sem dúvida o de um ancião, mas com algo de inabalável e até de imortal. Leu com lenta precisão duas redações de um mesmo capítulo épico. Na primeira, um exército marcha para uma batalha através de uma montanha deserta; o horror das pedras e da sombra fá-lo desprezar a vida e consegue com facilidade a vitória; na segunda, o mesmo exército atravessa um palácio em que há uma festa; a resplandecente batalha parece-lhes uma continuação da festa e conseguem a vitória. Eu ouvia com digna veneração estas velhas ficções, talvez menos admiráveis que o fato de as ter ideado o meu sangue e de um homem de um império longínquo mas restituir, no decorrer de uma desesperada aventura, numa ilha ocidental. Lembro-me das palavras finais, repetidas em cada redação como um mandamento secreto: ‘Assim combateram os heróis, tranqüilo o admirável coração, violenta a espada, resignados a matar e a morrer’.  
          “A partir desse instante, senti à minha volta e no meu obscuro corpo uma invisível e intangível palpitação. Não a palpitação dos divergentes, paralelos e finalmente coalescentes exércitos, mas uma agitação mais inacessível, mais íntima e que eles de certo modo prefiguravam. Stephen Albert prosseguiu:
          “- Não creio que o seu ilustre antepassado jogasse ociosamente com as variações. Não acho verosímil que tenha sacrificado treze anos à infinita execução de uma experiência retórica. No seu país, o romance é um gênero subalterno; naquele tempo era um gênero desprezível. Tsui Pên foi um romancista genial, mas também foi um homem de letras que sem dúvida não se considerou apenas um simples romancista. O testemunho dos seus contemporâneos proclama - e fartamente o confirma sua vida – suas inclinações metafísicas e místicas. A controvérsia filosófica usurpa boa parte do seu romance. Sei que de todos os problemas, nenhum outro o inquietou e o ocupou tanto como o abismal problema do tempo. Ora bem, é esse o único problema que não figura nas páginas do Jardim. Nem sequer usa a palavra que significa tempo. Como explica o senhor essa voluntária omissão?
          “Propus várias soluções; todas insuficientes. Discutimo-las; por fim, Stephen Albert disse-me:
          “- Numa charada cujo tema é o xadrez, qual é a única palavra proibida?
          “Refleti um momento e respondi:
          “- A palavra xadrez.
          “- Precisamente - disse Albert. - O jardim dos caminhos que se bifurcam é uma enorme charada, ou parábola, cujo tema é o tempo; essa causa recôndita proíbe-lhe a menção do seu nome. Omitir sempre uma palavra, recorrer a metáforas ineptas e a perífrases evidentes, é talvez o modo mais enfático de indicá-la. É o modo tortuoso que preferiu, em cada um dos meandros do seu infatigável romance, o oblíquo Tsui Pên. Comparei centenas de manuscritos, corrigi os erros que a negligência dos copistas introduziu, conjeturei o plano desse caos, restabeleci, julguei restabelecer a ordem primordial, traduzi a obra inteira: resulta-me que não emprega uma única vez a palavra tempo. A explicação é óbvia: O jardim dos caminhos que se bifurcam é uma imagem incompleta, mas não falsa, do universo tal como o concebia Tsui Pên. Ao contrário de Newton e de Schopenhauer, o seu antepassado não acreditava num tempo uniforme, absoluto. Acreditava em infinitas séries de tempos, numa rede crescente e vertiginosa de tempos divergentes, convergentes e paralelos. Essa trama de tempos que se aproximam, se bifurcam, se cortam ou que secularmente se ignoram, abrange todas as possibilidades. Nós não existimos na maior parte desses tempos; nalguns deles existe o senhor e eu não; noutros, eu, e não o senhor; noutros ainda, existimos os dois. Neste, que um favorável acaso me proporciona, o senhor chegou à minha casa; noutro, o senhor, ao atravessar o jardim, deu comigo morto; e noutro, eu digo estas mesmas palavras, mas sou um erro, um fantasma.
          “- Em todos - articulei não sem um certo tremor - agradeço e venero a sua recriação do jardim de Tsui Pên.
          “- Não em todos - murmurou com um sorriso. - O tempo bifurca-se perpetuamente na direção de inumeráveis futuros. Num deles sou seu inimigo.
          “Voltei a sentir aquela palpitação de que falei. Pareceu-me que o úmido jardim que rodeava a casa estava saturado até ao infinito de pessoas invisíveis. Essas pessoas eram Albert e eu, secretos, ocupadíssimos e multiformes noutras dimensões do tempo. Levantei os olhos e o tênue pesadelo dissipou-se. No amarelo e negro jardim havia um único homem; mas esse homem era forte como uma estátua, mas esse homem avançava pelo caminho e era o capitão Richard Madden.
          “- O futuro já existe - respondi -, mas eu sou seu amigo. Posso examinar outra vez a carta?
          “Albert levantou-se. Alto, abriu a gaveta da alta escrivaninha; virou-me por um momento as costas. Eu já tinha preparado o revólver. Disparei com extremo cuidado: Albert tombou, sem um ai, imediatamente. Juro que sua morte foi instantânea: uma fulminação.
          “O resto é irreal, insignificante. Nesse momento irrompeu Madden e prendeu-me. Fui condenado à forca. Abominavelmente venci: comuniquei a Berlim o secreto nome da cidade que devem atacar. Ontem bombardearam-na; li isso nos mesmos jornais que apresentaram à Inglaterra o enigma de o sábio sinólogo Stephen Albert ter morrido assassinado por um desconhecido, Yu Tsun. O Chefe decifrou esse enigma. Sabe que o meu problema era indicar (através do estrépito da guerra) a cidade que se chama Albert e que não achei outro meio senão matar uma pessoa com esse nome. Não sabe (ninguém pode saber) a minha imensa contrição e cansaço.


Jorge Luis Borges, in Ficções (1941).

  
____________________________
(1) Hipótese odiosa e ridícula. O espião prussiano Hans Rabener, codinome Viktor Runeberg, agrediu com uma pistola automática o portador da ordem de prisão, capitão Richard Madden. Este, em legítima defesa, causou-lhe ferimentos que vieram a determinar sua morte. (Nota do editor).