quarta-feira, 15 de junho de 2011

Maria Mutema (fragmento de "Grande sertão: veredas") - João Guimarães Rosa

Naquele lugar existia uma mulher, por nome Maria Mutema, pessoa igual às outras, sem nenhuma diversidade. Uma noite, o marido dela morreu, amanheceu morto de madrugada. Maria Mutema chamou por socorro, reuniu todos os mais vizinhos. O arraial era pequeno, todos vieram certificar. Sinal nenhum não se viu, e ele tinha estado nos dias antes em saúde apreciável, por isso se disse que só de acesso do coração era que podia ter querido morrer. E naquela tarde mesma do dia dessa manhã, o marido foi bem enterrado.
Maria Mutema era senhora vivida, mulher em preceito sertanejo. Se sentiu, foi em si, se sofreu muito não disse, guardou a dor sem demonstração. Mas isso lá é regra, entre gente que se diga, pelo visto a ninguém chamou atenção. O que deu em nota foi outra coisa: foi a religião da Mutema, que daí pegou a ir à igreja todo santo dia, afora que de três em três agora se confessava. Dera em carola — se dizia — só constante na salvação de sua alma. Ela sempre de preto, conforme os costumes, mulher que não ria — esse lenho seco. E, estando na igreja, não tirava os olhos do padre.
O padre, Padre Ponte, era um sacerdote bom-homem, de meia-idade, meio gordo, muito descansado nos modos e de todos bem estimado. Sem desrespeito, só por verdade no dizer, uma pecha ele tinha: ele relaxava. Gerara três filhos, com uma mulher, simplória e sacudida, que governava a casa e cozinhava para ele, e também acudia pelo nome de Maria, dita por aceita alcunha a Maria do Padre. Mas não vá maldar o senhor maior escândalo nessa situação — com a ignorância dos tempos, antigamente, essas coisas podiam, todo o mundo achava trivial. Os filhos, bem criados e bonitinhos, eram "os meninos da Maria do Padre". E em tudo mais o Padre Ponte era um vigário de mão-cheia, cumpridor e caridoso, pregando com muita virtude seu sermão e atendendo em qualquer hora do dia ou da noite, para levar aos roceiros o conforto da santa hóstia do Senhor ou dos santos-óleos.
Mas o que logo se soube, e disso se falou, era em duas partes: que a Maria Mutema tivesse tantos pecados para de três em três dias necessitar de penitência de coração e boca; e que o Padre Ponte visível tirasse desgosto de prestar a ela pai-ouvido naquele sacramento, que entre dois só dois se passa e tem de ser por ferro de tanto segredo resguardado. Contavam, mesmo, que, das primeiras vezes, povo percebia que o padre ralhava com ela, terrível, no confessionário. Mas a Maria Mutema se desajoelhava de lá, de olhos baixos, com tanta humildade serena, que uma santa padecedora mais parecia. Daí, aos três dias, retornava. E se viu, bem, que Padre Ponte todas as vezes fazia uma cara de verdadeiro sofrimento e temor, no ter de ir, a junjo, escutar a Mutema. Ia, porque confissão clamada não se nega. Mas ia a poder de ser padre, e não de ser só homem, como nós.
E daí mais, que, passando o tempo, como se diz: no decorrido, Padre Ponte foi adoecido ficando, de doença para morrer, se viu logo. De dia em dia, ele emagrecia, amofinava o modo, tinha dores, e em fim encaveirou, duma cor amarela de palha de milho velho; dava pena. Morreu triste. E desde por diante, mesmo quando veio outro padre para o São João Leão, aquela mulher Maria Mutema nunca mais voltou na igreja, nem por rezar nem por entrar. Coisas que são. E ela, dado que viúva soturna assim, que não se cedia em conversas, ninguém não alcançou de saber por que lei ela procedia e pensava.
Por fim, no porém, passados anos, foi tempo de missão, e chegaram no arraial os missionários. Esses eram dois padres estrangeiros, p'ra fortes e de caras coradas, bradando sermão forte, com forte voz, com fé braba. De manhã à noite, durado de três dias, eles estavam sempre na igreja, pregando, confessando, tirando rezas e aconselhando, com entusiasmados exemplos que enfileiravam o povo no bom rumo. A religião deles era alimpada e enérgica, com tanta saúde como virtude; e com eles não se brincava, pois tinham de Deus algum encoberto poder, conforme o senhor vai ver, por minha continuação. Só que no arraial foi grassando aquela boa bem-aventurança.
Aconteceu foi no derradeiro dia, isto é, véspera, pois no seguinte, que dava em domingo, ia ser festa de comunhão geral e glória santa. E foi de noite, acabada a bênção, quando um dos missionários subiu no púlpito, para a prédica, e tascava de começar de joelhos, rezando a salve-rainha. E foi nessa hora que a Maria Mutema entrou. Fazia tanto tempo que não comparecia em igreja; por que foi, então, que deu de vir?
Mas aquele missionário governava com luzes outras. Maria Mutema veio entrando, e ele esbarrou. Todo o mundo levou um susto: porque a salva-rainha é oração que não se pode partir em meio — em desde que de joelhos começada, tem de ter suas palavras seguidas até ao tresfim. Mas o missionário retomou a fraseação, só que com a voz demudada, isso se viu. E, mal no amém, ele se levantou, cresceu na beira do púlpito, em brasa vermelho, debruçada, deu um soco no pau do peitoril, parecia um touro tigre. E foi de grito:
—"A pessoa que por derradeiro entrou, tem de sair! A p'ra fora, já, já, essa mulher!"
Todos, no estarrecente, caçavam de ver a Maria Mutema.
—"Que saia, com seus maus segredos, em nome de Jesus e da Cruz! Se ainda for capaz de um arrependimento, então pode ir me esperar, agora mesmo, que vou ouvir sua confissão... Mas confissão esta ela tem de fazer é na porta do cemitério, onde estão dois defuntos enterrados!..."
Isso o missionário comandou: e os que estavam dentro da igreja sentiram o rojo dos exércitos de Deus, que lavoram em fundura e sumidade. Horror deu. Mulheres soltaram gritos, e meninos, outras despencavam no chão, ninguém ficou sem se ajoelhar. Muitos, muitos, daquela gente, choravam.
E Maria Mutema, sozinha em pé, torata magra de preto, deu gemido de lágrimas e exclamação, berro de corpo que faca estraçalha. Pediu perdão! Perdão forte, perdão de fogo, que da dura bondade de Deus baixasse nela, em dores de urgência, antes de qualquer hora de nossa morte. E rompeu fala, por entre prantos, ali mesmo, a fim de perdão de todos também, se confessava. Confissão edital, consoantemente, para tremer exemplo, raio em pesadelo de quem ouvia, público, que rasgava gastura, como porque avessava a ordem das coisas e o quieto comum do viver transtornava. Ao que ela, onça monstra, tinha matado o marido — e que era cobra, bicho imundo, sobrado do podre de todos os estercos. Que tinha matado o marido, aquela noite, sem motivo nenhum, sem malfeito dele nenhum, causa nenhuma —; por que, nem sabia. Matou — enquanto ele estava dormindo — assim despejou no buraquinho do ouvido dele, por um funil, um terrível escorrer de chumbo derretido. O marido passou, lá o que diz — do oco para o ocão — do sono para a morte, e lesão no buraco do ouvido dele ninguém não foi ver, não se notou. E, depois, por enjoar do Padre Ponte, também sem ter queixa nem razão, amargável mentiu, no confessionário: disse, afirmou que tinha matado o marido por causa dele, Padre Ponte — porque dele gostava de fogo de amores, e queria ser concubina amásia... Tudo era mentira, ela não queria nem gostava. Mas, com ver o padre em justa zanga, ela disso tomou gosto, e era um prazer de cão, que aumentava de cada vez, pelo que ele não estava em poder de se defender de modo nenhum, era um homem manso, pobre coitado, e padre. Todo o tempo ela vinha em igreja, confirmava o falso, mais declarava — edificar o mal. E daí, até que o Padre Ponte de desgosto adoeceu, e morreu em desespero calado... Tudo crime, e ela tinha feito! E agora implorava o perdão de Deus, aos uivos, se esguedelhando, torcendo as mãos, depois as mãos no alto ela levantava.
Mas o missionário, no púlpito, entoou grande o Bendito, louvado seja! — e, enquanto cantando mesmo, fazia os gestos para as mulheres todas saírem da igreja, deixando lá só os homens, porque a derradeira pregação de cada noite era mesmo sempre para os ouvintes senhores homens, como conforme.
E no outro dia, Domingo do Senhor, o arraial ilustrado com arcos e cordas de bandeirolas, e espoco de festa, foguetes muitos, missa cantada, procissão — mas todo o mundo só pensava naquilo. Maria Mutema, recolhida provisória presa na casa-de-escola, não comia, não sossegava, sempre de joelhos, clamando seu remorso, pedia perdão e castigo, e que todos viessem para cuspir em sua cara e dar bordoadas. Que ela — exclamava — tudo isso merecia. No meio-tempo, desenterraram da cova os ossos do marido: se conta que a gente sacolejava a caveira, e a bola de chumbo sacudia lá dentro, até tinia! Tanto por obra de Maria Mutema. Mas ela ficou no São João Leão ainda por mais de semana, os missionários tinham ido embora. Veio autoridade, delegado e praças, levaram a Mutema para culpa e júri, na cadeia de Araçuaí. Só que nos dias em que ainda esteve, o povo perdoou, vinham dar a ela palavras de consolo, e juntos rezarem. Trouxeram a Maria do Padre, e os meninos da Maria do Padre, para perdoarem também, tantos surtos produziam bem-estar e edificação. Mesmo, pela arrependida humildade que ela principiou, em tão pronunciado sofrer, alguns diziam que Maria Mutema estava ficando santa.

João Guimarães Rosa, in Grande sertão: veredas (1956).

domingo, 12 de junho de 2011

Caso de amor - Manoel de Barros

Uma estrada é deserta por dois motivos: por abandono ou por desprezo. Esta que eu ando nela agora é por abandono. Chega que os espinheiros a estão abafando pelas margens. Esta estrada melhora muito de eu ir sozinho nela. Eu ando por aqui desde pequeno. E sinto que ela bota sentido em mim. Eu acho que ela manja que eu fui para a escola e estou voltando agora para revê-la. Ela não tem indiferença pelo meu passado. Eu sinto mesmo que ela me reconhece agora, tantos anos depois. Eu sinto que ela melhora de eu ir sozinho sobre seu corpo. De minha parte eu achei ela bem acabadinha. Sobre suas pedras agora raramente um cavalo passeia. E quando vem um, ela o segura com carinho. Eu sinto mesmo hoje que a estrada é carente de pessoas e de bichos. Emas passavam sempre por ela esvoaçantes. Bando de caititus a atravessavam para ver o rio do outro lado. Eu estou imaginando que a estrada pensa que eu também sou como ela: uma coisa bem esquecida. Pode ser. Nem cachorro passa mais por nós. Mas eu ensino para ela como se deve comportar na solidão. Eu falo: deixe deixe meu amor, tudo vai acabar. Numa boa: a gente vai desaparecendo igual quando Carlitos vai desaparecendo no fim de uma estrada... Deixe, deixe, meu amor.

Manoel de Barros, in Memórias Inventadas – A infância (2003).


quarta-feira, 8 de junho de 2011

Nosso estranho amor - Caetano Veloso

Não quero sugar todo seu leite
Nem quero você enfeite do meu ser
Apenas te peço que respeite
O meu louco querer
Não importa com quem você se deite
Que você se deleite seja com quem for
Apenas te peço que aceite
O meu estranho amor
Ah! Mãinha deixa o ciúme chegar
Deixa o ciúme passar e sigamos juntos
Ah! Neguinha deixa eu gostar de você
Prá lá do meu coração não me diga
Nunca não
Teu corpo combina com meu jeito
Nós dois fomos feitos muito pra nós dois
Não valem dramáticos efeitos
Mas o que está depois
Não vamos fuçar nossos defeitos
Cravar sobre o peito as unhas do rancor
Lutemos mas só pelo direito
Ao nosso estranho amor.


segunda-feira, 6 de junho de 2011

Emma Zunz - Jorge Luis Borges

No dia 14 de janeiro de 1922, Emma Zunz, ao voltar da fábrica de tecidos Tarbuch e Loewenthal, encontrou no fundo do vestíbulo uma carta, datada do Brasil, pela qual soube que seu pai tinha morrido. Enganaram-na, à primeira vista, o selo e o envelope; depois, inquietou-a a letra desconhecida. Nove ou dez linhas mal traçadas quase enchiam a folha; Emma leu que o senhor Maier tinha ingerido por engano uma forte dose de veronal e tinha falecido a 3 do corrente no hospital de Bagé. Um companheiro de pensão de seu pai assinava a notícia, um tal Fein ou Fain, de Rio Grande, que não podia saber que se dirigia à filha do morto.

Emma deixou cair o papel. A primeira sensação foi de mal-estar no ventre e nos joelhos; depois, de cega culpa, de irrealidade, de frio, de temor; depois, quis já estar no dia seguinte. Imediatamente, compreendeu que essa vontade era inútil, porque a morte de seu pai era a única coisa que tinha sucedido no mundo e que continuaria sucedendo para sempre. Pegou o papel e foi para o quarto. Furtivamente, guardou-o na gaveta, como se, de alguma forma, já conhecesse os fatos ulteriores. Talvez já começasse a vislumbrá-los; já era a que seria.

Na crescente escuridão, Emma chorou até o fim daquele dia o suicídio de Manuel Maier, que nos velhos dias felizes fora Emanuel Zunz. Recordou veraneios numa chácara, perto de Gualeguay, recordou (procurou recordar) sua mãe, recordou a casinha de Lanús que lhes arremataram, recordou os amarelos losangos de uma janela, recordou o auto de prisão, o opróbrio, recordou as cartas anônimas com o comentário sobre “o desfalque do caixa”, recordou (mas isso ela nunca esquecia) que seu pai, na última noite, jurara que o ladrão era Loewenthal. Loewenthal, Aaron Loewenthal, antes gerente da fábrica e agora um dos donos. Emma, desde 1916, guardava o segredo. A ninguém o revelara, nem sequer a sua melhor amiga, Elsa Urstein. Talvez evitasse a profana incredulidade; talvez acreditasse que o segredo fosse um vínculo entre ela e o ausente. Loewenthal não sabia que ela sabia; Emma Zunz tirava desse fato ínfimo um sentimento de poder.

Não dormiu àquela noite, e, quando a primeira luz definiu o retângulo da janela, já estava perfeito seu plano. Procurou fazer com que esse dia, que lhe pareceu interminável, fosse como os outros. Havia na fábrica rumores de greve; Emma, como sempre, declarou-se contra qualquer violência. Às seis, concluído o trabalho, foi com Elsa a um clube para mulheres, com ginásio e piscina. Inscreveram-se; teve que repetir e soletrar seu nome e sobrenome, teve que achar graça das brincadeiras vulgares com que é comentado o exame médico. Com Elsa e com a mais moça das Kronfuss discutiu a que cinema iriam no domingo à tarde. Depois, falou-se de namorados e ninguém esperou que Emma falasse. Completaria dezenove anos em abril, mas os homens lhe inspiravam ainda um temor quase patológico... Na volta, preparou uma sopa de tapioca e uns legumes, comeu cedo, deitou-se e obrigou-se a dormir. Assim, laboriosa e trivial, passou a sexta-feira, dia 15, a véspera.

No sábado, a impaciência despertou-a. A impaciência, não a inquietude, e o singular alívio de estar finalmente naquele dia. Já não tinha que tramar e imaginar; dentro de algumas horas, atingiria a simplicidade dos fatos. Leu em La Prensa que o Nordstjärnan, de Malmö, zarparia nessa noite do cais 3; telefonou para Loewenthal, insinuou que desejava comunicar, sem que as outras soubessem, algo sobre a greve e prometeu passar pelo escritório, ao anoitecer. Tremia-lhe a voz; o tremor convinha a uma delatora. Nenhum outro fato memorável ocorreu nessa manhã. Emma trabalhou até as doze e marcou com Elsa e com Perla Kronfuss os pormenores do passeio de domingo. Deitou-se depois de almoçar e recapitulou, de olhos fechados, o plano que tramara. Pensou que a etapa final seria menos horrível que a primeira e que lhe proporcionaria, sem dúvida, o sabor da vitória e da justiça. De repente, alarmada, levantou-se e correu à gaveta da cômoda. Abriu-a; debaixo do retrato de Milton Sills, onde a deixara na noite anterior, estava a carta de Fain. Ninguém podia tê-la visto; começou a ler e rasgou-a.

Narrar com alguma realidade os fatos dessa tarde seria difícil e talvez improcedente. Um atributo do infernal é a irrealidade, um atributo que parece diminuir seus terrores e que talvez os agrave. Como tornar verossímil uma ação na qual quase não acreditou quem a executava, como recuperar esse breve caos que hoje a memória de Emma repudia e confunde? Emma vivia em Almagro, na rua Liniers; consta-nos que nessa tarde foi ao porto. Talvez no infame Paseo de Julio se tenha visto multiplicada em espelhos, anunciada por luzes e despida pelos olhos famintos, porém mais razoável é conjeturar que a princípio errou, inadvertida, pela indiferente galeria... Entrou em dois ou três bares, viu a rotina ou os modos de outras mulheres. Por fim, deu com homens do Nordstjärnan. Temeu que um deles, muito jovem, lhe inspirasse alguma ternura e optou por outro, talvez mais baixo que ela e grosseiro, a fim de que a pureza do horror não fosse diminuída. O homem conduziu-a a uma porta e depois a um turvo saguão e depois a uma escada tortuosa e depois a um vestíbulo (em que havia uma vidraça com losangos idênticos aos da casa em Lanús) e depois a um corredor e depois a uma porta que se fechou. Os fatos graves estão fora do tempo, seja porque neles o passado imediato fica como que separado do futuro, seja porque não parecem consecutivas as partes que os formam.

Naquele tempo fora do tempo, naquela desordem caótica de sensações inconexas e atrozes, Emma Zunz pensou uma única vez no morto que motivava o sacrifício? Tenho para mim que pensou uma vez e que nesse momento correu perigo seu desesperado propósito. Pensou (não pôde deixar de pensar) que seu pai tinha feito à sua mãe a coisa horrível que lhe faziam agora. Pensou com débil assombro e se refugiou, em seguida, na vertigem. O homem, sueco ou finlandês, não falava espanhol; foi um instrumento para Emma como esta o foi para ele, mas ela serviu para o gozo e ele para a justiça.

Quando ficou sozinha, Emma não abriu em seguida os olhos. Na mesa-de-cabeceira estava o dinheiro deixado pelo homem. Emma sentou-se e o rasgou como antes rasgara a carta. Rasgar dinheiro é uma impiedade, como jogar fora o pão; Emma arrependeu-se, tão logo o fez. Um ato de soberba, e naquele dia... O medo perdeu-se na tristeza de seu corpo, no asco. O asco e a tristeza prendiam-na, mas Emma lentamente se levantou e começou a vestir-se. No quarto não restavam cores vivas; o último crepúsculo se adensava. Ela pôde sair sem que a percebessem; na esquina, pegou um Lacroze que ia para o oeste. Escolheu, conforme seu plano, o banco mais da frente para que não lhe vissem o rosto. Talvez a tenha consolado verificar, no insípido movimento das ruas, que o acontecido não contaminara as coisas. Passou por bairros decrescentes e opacos, vendo-os e esquecendo-os no ato, e desceu numa das esquinas de Warnes. Paradoxalmente, seu cansaço vinha a ser uma força, pois a obrigava a concentrar-se nos pormenores da aventura e lhe ocultava o fundo e o fim.

Aaron Loewenthal era, para todos, um homem sério; para seus poucos íntimos, um avarento. Vivia nos altos da fábrica sozinho. Estabelecido no desmantelado arrabalde, temia os ladrões; no pátio da fábrica havia um grande cachorro e na gaveta do escritório, ninguém o ignorava, um revólver. Chorara com decoro, no ano anterior, a inesperada morte da mulher - uma Gauss, que lhe trouxe um bom dote! -, mas o dinheiro era sua verdadeira paixão. Com íntima vergonha, sabia ser menos apto para ganhá-lo que para conservá-lo. Era muito religioso; acreditava ter com o Senhor um pacto secreto, que o eximia de agir bem a troco de orações e devoções. Calvo, corpulento, enlutado, de óculos escuros e barba ruiva, esperava de pé, junto à janela, a informação confidencial da operária Zunz.

Viu-a empurrar a grade (que ele deixara entreaberta, de propósito) e cruzar o pátio sombrio. Viu-a dar uma pequena volta quando o cachorro amarrado latiu. Os lábios de Emma se atarefavam como os de quem reza em voz baixa; cansados, repetiam a sentença que o senhor Loewenthal ouviria antes de morrer.

As coisas não aconteceram como previra Emma Zunz. Desde a madrugada anterior, sonhara, muitas vezes, apontando o firme revólver, forçando o miserável a confessar a miserável culpa e expondo o corajoso estratagema que permitiria à Justiça de Deus triunfar sobre a justiça humana. (Não por medo, mas por ser um instrumento da Justiça, ela não queria ser castigada.) Depois, um só balaço no meio do peito rubricaria a sorte de Loewenthal. Mas as coisas não ocorreram assim.

Diante de Aaron Loewenthal, mais que a urgência de vingar o pai, Emma sentiu a de castigar o ultraje sofrido por isso. Não podia deixar de matá-lo, depois dessa minuciosa desonra. Tampouco tinha tempo a perder com teatralidades. Sentada, tímida, pediu desculpas a Loewenthal, invocou (à maneira de delatora) as obrigações da lealdade, pronunciou alguns nomes, deu a entender outros e calou-se como se o medo a vencesse. Conseguiu que Loewenthal saísse para buscar um copo d’água. Quando ele, incrédulo de tal agitação, mas indulgente, voltou da sala de jantar, Emma já tinha tirado da gaveta o pesado revólver. Apertou o gatilho duas vezes. O considerável corpo caiu como se os estampidos e a fumaça o tivessem rompido, o copo se partiu, o rosto olhou-a com assombro e cólera, a boca injuriou-a em espanhol e em iídiche. Os palavrões não cessavam; Emma teve de fazer fogo outra vez. No pátio, o cachorro acorrentado pôs-se a ladrar, e uma efusão de sangue brotou dos lábios obscenos e manchou a barba e a roupa. Emma iniciou a acusação que tinha preparada (“Vinguei meu pai e não me poderão castigar...”), mas não a concluiu, porque o senhor Loewenthal já estava morto. Não soube nunca se ele chegou a compreender.

Os tensos latidos lembraram que ela não podia, ainda, descansar. Desordenou o divã, desabotoou o paletó do cadáver, tirou-lhe os óculos salpicados e deixou-os sobre o fichário. Em seguida, pegou o telefone e repetiu o que tantas vezes repetiria, com essas e com outras palavras: “Aconteceu uma coisa inacreditável... O senhor Loewenthal me fez vir com o pretexto da greve... Abusou de mim, eu o matei...”

A história era inacreditável, de fato, mas se impôs a todos, pois substancialmente era certa. Verdadeiro era o tom de Emma Zunz, verdadeiro o pudor, verdadeiro o ódio. Verdadeiro também era o ultraje que padecera; só eram falsas as circunstâncias, a hora e um ou dois nomes próprios.

Jorge Luis Borges, in O Aleph (1949).

A terceira margem do rio - João Guimarães Rosa

         Nosso pai era homem cumpridor, ordeiro, positivo; e sido assim desde mocinho e menino, pelo que testemunharam as diversas sensatas pessoas, quando indaguei a informação. Do que eu mesmo me alembro, ele não figurava mais estúrdio nem mais triste do que os outros, conhecidos nossos. Só quieto. Nossa mãe era quem regia, e que ralhava no diário com a gente - minha irmã, meu irmão e eu. Mas se deu que, certo dia, nosso pai mandou fazer para si uma canoa.

         Era a sério. Encomendou a canoa especial, de pau de vinhático, pequena, mal com a tabuinha de popa, como para caber justo o remador. Mas teve de ser toda fabricada, escolhida forte e arqueada em rijo, própria para dever durar na água por uns vinte ou trinta anos. Nossa mãe jurou muito contra a idéia. Seria que, ele, que nessas artes não vadiava, se ia propor agora para pescarias e caçadas? Nosso pai nada não dizia. Nossa casa, no tempo, ainda era mais próxima do rio, obra de nem quarto de légua: o rio por aí se estendendo grande, fundo, calado que sempre. Largo, de não se poder ver a forma de outra beira. E esquecer não posso, do dia em que a canoa ficou pronta.

         Sem alegria nem cuidado, nosso pai encalcou o chapéu e decidiu um adeus para a gente. Nem falou outras palavras, não pegou matula e trouxa, não fez a alguma recomendação. Nossa mãe, a gente achou que ela ia esbravejar, mas persistiu somente alva de pálida, mascou o beiço e bramou: -Cê vai, ocê fique, você nunca volte!” Nosso pai suspendeu a resposta. Espiou manso para mim, me acenando de vir também, por uns passos. Temi a ira de nossa mãe, mas obedeci, de vez de jeito. O rumo daquilo me animava, chega que um propósito perguntei: -Pai, o senhor me leva junto, nessa sua canoa?” Ele só retornou o olhar em mim, e me botou a bênção, com gesto me mandando para trás. Fiz que vim, mas ainda virei, na grota do mato, para saber. Nosso pai entrou na canoa e desamarrou, pelo remar. E a canoa saiu se indo - a sombra dela por igual, feito um jacaré, comprida longa.

         Nosso pai não voltou. Ele não tinha ido a nenhuma parte. Só executava a invenção de se permanecer naqueles espaços do rio, de meia a meio, sempre dentro da canoa, para dela não saltar, nunca mais. A estranheza dessa verdade deu para estarrecer de todo a gente. Aquilo que não havia, acontecia. Os parentes, vizinhos e conhecidos nossos, se reuniram, tomaram juntamente conselho.

         Nossa mãe, vergonhosa, se portou com muita cordura; por isso, todos pensaram de nosso pai a razão em que não queriam falar: doideira. Só uns achavam o entanto de poder também ser pagamento de promessa; ou que, nosso pai, quem sabe, por escrúpulo de estar com alguma feia doença, que seja, a lepra, se desertava para outra sina de existir, perto e longe de sua família dele. As vozes das notícias se dando pelas certas pessoas - passadores, moradores das beiras, até do afastado da outra banda - descrevendo que nosso pai nunca se surgia a tomar terra, em ponto nem canto, de dia nem de noite, da forma como cursava no rio, solto solitariamente. Então, pois, nossa mãe e os aparentados nossos, assentaram: que o mantimento que tivesse, ocultado na canoa, se gastava; e, ele, ou desembarcava e viajava s’embora, para jamais, o que ao menos se condizia mais correto, ou se arrependia, por uma vez, para casa.

         No que num engano. Eu mesmo cumpria de trazer para ele, cada dia, um tanto de comida furtada: a idéia que senti, logo na primeira noite, quando o pessoal nosso experimentou de acender fogueiras em beirada do rio, enquanto que, no alumiado delas, se rezava e se chamava. Depois, no seguinte, apareci, com rapadura, broa de pão, cacho de bananas. Enxerguei nosso pai, no enfim de uma hora, tão custosa para sobrevir: só assim, ele no ao-longe, sentado no fundo da canoa, suspendida no liso do rio. Me viu, não remou para cá, não fez sinal. Mostrei o de comer, depositei num oco de pedra do barranco, a salvo de bicho mexer e a seco de chuva e orvalho. Isso, que fiz, e refiz, sempre, tempos afora. Surpresa que mais tarde tive: que nossa mãe sabia desse meu encargo, só se encobrindo de não saber; ela mesma deixava, facilitando, sobra de coisas, para o meu conseguir. Nossa mãe muito não se demonstrava.

         Mandou vir o tio nosso, irmão dela, para auxiliar na fazenda e nos negócios. Mandou vir o mestre, para nós, os meninos. Incumbiu ao padre que um dia se revestisse, em praia de margem, para esconjurar e clamar a nosso pai o dever de desistir da tristonha teima. De outra, por arranjo dela, para medo, vieram os dois soldados. Tudo o que não valeu de nada. Nosso pai passava ao largo, avistado ou diluso, cruzando na canoa, sem deixar ninguém se chegar à pega ou à fala. Mesmo quando foi, não faz muito, dos homens do jornal, que trouxeram a lancha e tencionavam tirar retrato dele, não venceram: nosso pai se desaparecia para a outra banda, aproava a canoa no brejão, de léguas, que há, por entre juncos e mato, e só ele conhecesse, a palmos, a escuridão daquele.

         A gente teve de se acostumar com aquilo. Às penas, que, com aquilo, a gente mesmo nunca se acostumou, em si, na verdade. Tiro por mim, que, no que queria, e no que não queria, só com nosso pai me achava: assunto que jogava para trás meus pensamentos. O severo que era, de não se entender, de maneira nenhuma, como ele agüentava. De dia e de noite, com sol ou aguaceiros, calor, sereno, e nas friagens terríveis de meio-do-ano, sem arrumo, só com o chapéu velho na cabeça, por todas as semanas, e meses, e os anos - sem fazer conta do se-ir do viver. Não pojava em nenhuma das duas beiras, nem nas ilhas e croas do rio, não pisou mais em chão nem capim. Por certo, ao menos, que, para dormir seu tanto, ele fizesse amarração da canoa, em alguma ponta-de-ilha, no esconso. Mas não armava um foguinho em praia, nem dispunha de sua luz feita, nunca mais riscou um fósforo. O que consumia de comer, era só um quase; mesmo do que a gente depositava, no entre as raízes da gameleira, ou na lapinha de pedra do barranco, ele recolhia pouco, nem o bastável. Não adoecia? E a constante força nos braços, para ter tento na canoa, resistido, mesmo na demasia das enchentes, no subimento, aí quando no lanço da correnteza enorme do rio tudo rola o perigoso, aqueles corpos de bichos mortos e paus-de-árvore descendo - de espanto de esbarro. E nunca falou mais palavra, com pessoa alguma. Nós, também, não falávamos mais dele. Só se pensava. Não, de nosso pai não se podia ter esquecimento; e, se, por um pouco, a gente fazia que esquecia, era só para se despertar de novo, de repente, com a memória, no passo de outros sobressaltos.

         Minha irmã se casou; nossa mãe não quis festa. A gente imaginava nele, quando se comia uma comida mais gostosa; assim como, no gasalhado da noite, no desamparo dessas noites de muita chuva, fria, forte, nosso pai só com a mão e uma cabaça para ir esvaziando a canoa da água do temporal. Às vezes, algum conhecido nosso achava que eu ia ficando mais parecido com nosso pai. Mas eu sabia que ele agora virara cabeludo, barbudo, de unhas grandes, mal e magro, ficado preto de sol e dos pêlos, com o aspecto de bicho, conforme quase nu, mesmo dispondo das peças de roupas que a gente de tempos em tempos fornecia.

         Nem queria saber de nós; não tinha afeto? Mas, por afeto mesmo, de respeito, sempre que às vezes me louvavam, por causa de algum meu bom procedimento, eu falava: -Foi pai que um dia me ensinou a fazer assim...”; o que não era o certo, exato; mas, que era mentira por verdade. Sendo que, se ele não se lembrava mais, nem queria saber da gente, por que, então, não subia ou descia o rio, para outras paragens, longe, no não-encontrável? Só ele soubesse. Mas minha irmã teve menino, ela mesma entestou que queria mostrar para ele o neto. Viemos, todos, no barranco, foi num dia bonito, minha irmã de vestido branco, que tinha sido o do casamento, ela erguia nos braços a criancinha, o marido dela segurou, para defender os dois, o guarda-sol. A gente chamou, esperou. Nosso pai não apareceu. Minha irmã chorou, nós todos aí choramos, abraçados.

         Minha irmã se mudou, com o marido, para longe daqui. Meu irmão resolveu e se foi, para uma cidade. Os tempos mudavam, no devagar depressa dos tempos. Nossa mãe terminou indo também, de uma vez, residir com minha irmã, ela estava envelhecida. Eu fiquei aqui, de resto. Eu nunca podia querer me casar. Eu permaneci, com as bagagens da vida. Nosso pai carecia de mim, eu sei - na vagação, no rio no ermo - sem dar razão de seu feito. Seja que, quando eu quis mesmo saber, e firme indaguei, me diz-que-disseram: que constava que nosso pai, alguma vez, tivesse revelado a explicação, ao homem que para ele aprontara a canoa. Mas, agora, esse homem já tinha morrido, ninguém soubesse, fizesse recordação, de nada, mais. Só as falsas conversas, sem senso, como por ocasião, no começo, na vinda das primeiras cheias do rio, com chuvas que não estiavam, todos temeram o fim-do-mundo, diziam: que nosso pai fosse o avisado que nem Noé, que, por tanto, a canoa ele tinha antecipado; pois agora me entrelembro. Meu pai, eu não podia malsinar. E apontavam já em mim uns primeiros cabelos brancos.

         Sou homem de tristes palavras. De que era que eu tinha tanta, tanta culpa? Se o meu pai, sempre fazendo ausência: e o rio-rio-rio, o rio - pondo perpétuo. Eu sofria já o começo de velhice - esta vida era só o demoramento. Eu mesmo tinha achaques, ânsias, cá de baixo, cansaços, perrenguice de reumatismo. E ele? Por quê? Devia de padecer demais. De tão idoso, não ia, mais dia menos dia, fraquejar do vigor, deixar que a canoa emborcasse, ou que bubuiasse sem pulso, na levada do rio, para se despenhar horas abaixo, em tororama e no tombo da cachoeira, brava, com o fervimento e morte. Apertava o coração. Ele estava lá, sem a minha tranqüilidade. Sou o culpado do que nem sei, de dor em aberto, no meu foro. Soubesse - se as coisas fossem outras. E fui tomando idéia.

         Sem fazer véspera. Sou doido? Não. Na nossa casa, a palavra doido não se falava, nunca mais se falou, os anos todos, não se condenava ninguém de doido. Ninguém é doido. Ou, então, todos. Só fiz, que fui lá. Com um lenço, para o aceno ser mais. Eu estava muito no meu sentido. Esperei. Ao por fim, ele apareceu, aí e lá, o vulto. Estava ali, sentado à popa. Estava ali, de grito. Chamei, umas quantas vezes. E falei, o que me urgia, jurado e declarado, tive que reforçar a voz: -Pai, o senhor está velho, já fez o seu tanto... Agora, o senhor vem, não carece mais... O senhor vem, e eu, agora mesmo, quando que seja, a ambas vontades, eu tomo o seu lugar, do senhor, na canoa!...” E, assim dizendo, meu coração bateu no compasso do mais certo.

         Ele me escutou. Ficou em pé. Manejou remo n’água, proava para cá, concordado. E eu tremi, profundo, de repente: porque, antes, ele tinha levantado o braço e feito um saudar de gesto - o primeiro, depois de tamanhos anos decorridos! E eu não podia... Por pavor, arrepiados os cabelos, corri, fugi, me tirei de lá, num procedimento desatinado. Porquanto que ele me pareceu vir: da parte de além. E estou pedindo, pedindo, pedindo um perdão.

         Sofri o grave frio dos medos, adoeci. Sei que ninguém soube mais dele. Sou homem, depois desse falimento? Sou o que não foi, o que vai ficar calado. Sei que agora é tarde, e temo abreviar com a vida, nos rasos do mundo. Mas, então, ao menos, que, no artigo da morte, peguem em mim, e me depositem também numa canoinha de nada, nessa água, que não pára, de longas beiras: e, eu, rio abaixo, rio afora, rio adentro - o rio.

João Guimarães Rosa, in Primeiras estórias (1962).