quarta-feira, 15 de julho de 2009

Mas vai chover - Clarice Lispector

Clarice Lispector

    Maria Angélica de Andrade tinha sessenta anos. E um amante, Alexandre, de dezenove anos. 
    Todos sabiam que o menino se aproveitava da riqueza de Maria Angélica. Só Maria Angélica não suspeitava. 
    Começou assim: Alexandre era entregador de produtos farmacêuticos e tocou a campainha da casa de Maria Angélica. Esta mesma abriu a porta. E deparou-se com um jovem forte, alto, de grande beleza. Em vez de receber o remédio que encomendara e pagar o preço, perguntou-lhe, meio assustada com a própria ousadia, se não queria entrar para tomar um café.
    Alexandre espantou-se e disse que não, obrigado. Mas ela insistiu. Acrescentou que tinha bolo também.
    O rapaz hesitava, visivelmente constrangido. Mas disse:
    – Se for por pouco tempo, entro, porque tenho que trabalhar.
    Entrou. Maria Angélica não sabia que já estava apaixonada. Deu-lhe uma grossa fatia de bolo e café com leite. Enquanto ele comia pouco à vontade, ela embevecida o olhava. Ele era a força, a juventude, o sexo há muito tempo abandonado. O rapaz acabou de comer e beber, e enxugou a boca com a manga da camisa. Maria Angélica não achou que fossem maus modos: ficou deliciada, achou-o natural, simples, encantador.
    – Agora vou embora que meu patrão vai me deixar grilado se eu demorar.
    Ela estava fascinada. Observou que ele tinha umas poucas espinhas no rosto. Mas isso não lhe alterava a beleza e a masculinidade: os hormônios lá ferviam. Aquele, sim, era um homem. Deu-lhe uma gorjeta enorme, desproporcional, que surpreendeu o rapaz. E disse com uma vozinha cantante e com trejeitos de mocinha romântica:
    – Só deixo você sair se prometer que voltará! Hoje mesmo! Porque vou pedir uma vitaminazinha na farmácia...
    Uma hora depois ele estava de volta com as vitaminas. Ela havia mudado de roupa, estava com um quimono de renda transparente. Via-se a marca de suas calcinhas. Mandou-o entrar. Disse-lhe que era viúva. Era o modo de lhe avisar que era livre. Mas o rapaz não entendia.
    Convidou-o a percorrer o bem-decorado apartamento deixando-o embasbacado. Levou-o a seu quarto. Não sabia como fazer para que ele entendesse. Disse-lhe então:
    – Deixe eu lhe dar um beijinho! 
    O rapaz se espantou, estendeu-lhe o rosto. Mas ela alcançou bem depressa a boca e quase a devorou.
    – Minha senhora, disse o menino nervoso, por favor se controle! A senhora está passando bem?
    – Não posso me controlar! Eu te amo! Venha para a cama comigo!
    – Tá doida?!
    – Não estou doida! Ou melhor: estou doida por você! Gritou-lhe enquanto tirava a coberta roxa da grande cama de casal.
    E vendo que ele nunca entenderia, disse-lhe morta de vergonha:
    – Venha para a cama comigo...
    – Eu?!
    – Eu lhe dou um presente grande! Eu lhe dou um carro!
    Carro? Os olhos do rapaz faiscaram de cobiça. Um carro! Era tudo o que desejava na vida. Perguntou desconfiado:
    – Um karmann-ghia?
    – Sim, meu amor, o que você quiser!
    O que se passou em seguida foi horrível. Não é necessário saber. Maria Angélica – oh, meu Deus, tenha piedade de mim, me perdoe por ter que escrever isto! – Maria Angélica dava gritinhos na hora do amor. E Alexandre tendo que suportar com nojo, com revolta. Transformou-se num rebelado para o resto da vida. Tinha a impressão de que nunca mais ia poder dormir com uma mulher. O que aconteceria mesmo: aos vinte e sete anos ficou impotente.
    E tornaram-se amantes. Ele, por causa dos vizinhos, não morava com ela. Quis morar num hotel de luxo: tomava café na cama. E logo abandonou o emprego. Comprou camisas caríssimas. Foi a um dermatologista e as espinhas desapareceram.
    Maria Angélica mal acreditava na sua sorte. Pouco se importava com as criadas que quase riam na sua cara.
    Uma amiga sua advertiu-lhe:
    – Maria Angélica, você não vê que o rapaz é um pilantra? Que está explorando você?
    – Não admito que você chame Alex de pilantra! E ele me ama!
    Um dia Alex teve uma ousadia. Disse-lhe:
    – Vou passar uns dias fora do Rio com uma garota que conheci. Preciso de dinheiro.
    Foram dias horríveis para Maria Angélica. Não saiu de casa, não tomou banho, mal se alimentou. Era por teimosia que ainda acreditava em Deus. Porque Deus a abandonara. Ela era obrigada a ser penosamente ela mesma.
    Cinco dias depois ele voltou, todo pimpão, todo alegre. Trouxe-lhe de presente uma lata de goiabada-cascão. Ela foi comer e quebrou um dente. Teve que ir ao dentista para pôr um dente falso.
    E a vida corria. As contas aumentavam. Alexandre exigente. Maria Angélica aflita. Quando fez sessenta e um anos de idade ele não apareceu. Ela ficou sozinha diante do bolo de aniversário.
    Então – então aconteceu.
    Alexandre lhe disse:
    – Preciso de um milhão de cruzeiros.
    – Um milhão? Espantou-se Maria Angélica.
    – Sim!, respondeu irritado, um bilhão antigo!
    – Mas... mas eu não tenho tanto dinheiro...
    – Venda o apartamento, então, e venda o seu Mercedes, dispense o chofer.
    
 Mesmo assim não dava, meu amor, tenha piedade de mim!
    O rapaz enfureceu-se:
    – Sua velha desgraçada! sua porca, sua vagabunda! Sem um bilhão não me presto mais para as suas sem-vergonhices!
    E, num ímpeto de ódio, saiu batendo a porta de casa.
    Maria Angélica ficou ali de pé. Doía-lhe o corpo todo.
    Depois foi devagar sentar-se no sofá da sala. Parecia uma ferida de guerra. Mas não havia Cruz Vermelha que a socorresse. Estava quieta, muda. Sem palavra nenhuma a dizer.
    – Parece – pensou – parece que vai chover.



Clarice Lispector, in A via crucis do corpo. Rio de Janeiro, ed. Rocco, 1998.

Outro conto:
A procura de uma dignidade

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