Naquele lugar existia uma mulher, por nome Maria Mutema, pessoa igual às outras, sem nenhuma diversidade. Uma noite, o marido dela morreu, amanheceu morto de madrugada. Maria Mutema chamou por socorro, reuniu todos os mais vizinhos. O arraial era pequeno, todos vieram certificar. Sinal nenhum não se viu, e ele tinha estado nos dias antes em saúde apreciável, por isso se disse que só de acesso do coração era que podia ter querido morrer. E naquela tarde mesma do dia dessa manhã, o marido foi bem enterrado.
Maria Mutema era senhora vivida, mulher em preceito sertanejo. Se sentiu, foi em si, se sofreu muito não disse, guardou a dor sem demonstração. Mas isso lá é regra, entre gente que se diga, pelo visto a ninguém chamou atenção. O que deu em nota foi outra coisa: foi a religião da Mutema, que daí pegou a ir à igreja todo santo dia, afora que de três em três agora se confessava. Dera em carola — se dizia — só constante na salvação de sua alma. Ela sempre de preto, conforme os costumes, mulher que não ria — esse lenho seco. E, estando na igreja, não tirava os olhos do padre.
O padre, Padre Ponte, era um sacerdote bom-homem, de meia-idade, meio gordo, muito descansado nos modos e de todos bem estimado. Sem desrespeito, só por verdade no dizer, uma pecha ele tinha: ele relaxava. Gerara três filhos, com uma mulher, simplória e sacudida, que governava a casa e cozinhava para ele, e também acudia pelo nome de Maria, dita por aceita alcunha a Maria do Padre. Mas não vá maldar o senhor maior escândalo nessa situação — com a ignorância dos tempos, antigamente, essas coisas podiam, todo o mundo achava trivial. Os filhos, bem criados e bonitinhos, eram "os meninos da Maria do Padre". E em tudo mais o Padre Ponte era um vigário de mão-cheia, cumpridor e caridoso, pregando com muita virtude seu sermão e atendendo em qualquer hora do dia ou da noite, para levar aos roceiros o conforto da santa hóstia do Senhor ou dos santos-óleos.
Mas o que logo se soube, e disso se falou, era em duas partes: que a Maria Mutema tivesse tantos pecados para de três em três dias necessitar de penitência de coração e boca; e que o Padre Ponte visível tirasse desgosto de prestar a ela pai-ouvido naquele sacramento, que entre dois só dois se passa e tem de ser por ferro de tanto segredo resguardado. Contavam, mesmo, que, das primeiras vezes, povo percebia que o padre ralhava com ela, terrível, no confessionário. Mas a Maria Mutema se desajoelhava de lá, de olhos baixos, com tanta humildade serena, que uma santa padecedora mais parecia. Daí, aos três dias, retornava. E se viu, bem, que Padre Ponte todas as vezes fazia uma cara de verdadeiro sofrimento e temor, no ter de ir, a junjo, escutar a Mutema. Ia, porque confissão clamada não se nega. Mas ia a poder de ser padre, e não de ser só homem, como nós.
E daí mais, que, passando o tempo, como se diz: no decorrido, Padre Ponte foi adoecido ficando, de doença para morrer, se viu logo. De dia em dia, ele emagrecia, amofinava o modo, tinha dores, e em fim encaveirou, duma cor amarela de palha de milho velho; dava pena. Morreu triste. E desde por diante, mesmo quando veio outro padre para o São João Leão, aquela mulher Maria Mutema nunca mais voltou na igreja, nem por rezar nem por entrar. Coisas que são. E ela, dado que viúva soturna assim, que não se cedia em conversas, ninguém não alcançou de saber por que lei ela procedia e pensava.
Por fim, no porém, passados anos, foi tempo de missão, e chegaram no arraial os missionários. Esses eram dois padres estrangeiros, p'ra fortes e de caras coradas, bradando sermão forte, com forte voz, com fé braba. De manhã à noite, durado de três dias, eles estavam sempre na igreja, pregando, confessando, tirando rezas e aconselhando, com entusiasmados exemplos que enfileiravam o povo no bom rumo. A religião deles era alimpada e enérgica, com tanta saúde como virtude; e com eles não se brincava, pois tinham de Deus algum encoberto poder, conforme o senhor vai ver, por minha continuação. Só que no arraial foi grassando aquela boa bem-aventurança.
Aconteceu foi no derradeiro dia, isto é, véspera, pois no seguinte, que dava em domingo, ia ser festa de comunhão geral e glória santa. E foi de noite, acabada a bênção, quando um dos missionários subiu no púlpito, para a prédica, e tascava de começar de joelhos, rezando a salve-rainha. E foi nessa hora que a Maria Mutema entrou. Fazia tanto tempo que não comparecia em igreja; por que foi, então, que deu de vir?
Mas aquele missionário governava com luzes outras. Maria Mutema veio entrando, e ele esbarrou. Todo o mundo levou um susto: porque a salva-rainha é oração que não se pode partir em meio — em desde que de joelhos começada, tem de ter suas palavras seguidas até ao tresfim. Mas o missionário retomou a fraseação, só que com a voz demudada, isso se viu. E, mal no amém, ele se levantou, cresceu na beira do púlpito, em brasa vermelho, debruçada, deu um soco no pau do peitoril, parecia um touro tigre. E foi de grito:
—"A pessoa que por derradeiro entrou, tem de sair! A p'ra fora, já, já, essa mulher!"
Todos, no estarrecente, caçavam de ver a Maria Mutema.
—"Que saia, com seus maus segredos, em nome de Jesus e da Cruz! Se ainda for capaz de um arrependimento, então pode ir me esperar, agora mesmo, que vou ouvir sua confissão... Mas confissão esta ela tem de fazer é na porta do cemitério, onde estão dois defuntos enterrados!..."
Isso o missionário comandou: e os que estavam dentro da igreja sentiram o rojo dos exércitos de Deus, que lavoram em fundura e sumidade. Horror deu. Mulheres soltaram gritos, e meninos, outras despencavam no chão, ninguém ficou sem se ajoelhar. Muitos, muitos, daquela gente, choravam.
E Maria Mutema, sozinha em pé, torata magra de preto, deu gemido de lágrimas e exclamação, berro de corpo que faca estraçalha. Pediu perdão! Perdão forte, perdão de fogo, que da dura bondade de Deus baixasse nela, em dores de urgência, antes de qualquer hora de nossa morte. E rompeu fala, por entre prantos, ali mesmo, a fim de perdão de todos também, se confessava. Confissão edital, consoantemente, para tremer exemplo, raio em pesadelo de quem ouvia, público, que rasgava gastura, como porque avessava a ordem das coisas e o quieto comum do viver transtornava. Ao que ela, onça monstra, tinha matado o marido — e que era cobra, bicho imundo, sobrado do podre de todos os estercos. Que tinha matado o marido, aquela noite, sem motivo nenhum, sem malfeito dele nenhum, causa nenhuma —; por que, nem sabia. Matou — enquanto ele estava dormindo — assim despejou no buraquinho do ouvido dele, por um funil, um terrível escorrer de chumbo derretido. O marido passou, lá o que diz — do oco para o ocão — do sono para a morte, e lesão no buraco do ouvido dele ninguém não foi ver, não se notou. E, depois, por enjoar do Padre Ponte, também sem ter queixa nem razão, amargável mentiu, no confessionário: disse, afirmou que tinha matado o marido por causa dele, Padre Ponte — porque dele gostava de fogo de amores, e queria ser concubina amásia... Tudo era mentira, ela não queria nem gostava. Mas, com ver o padre em justa zanga, ela disso tomou gosto, e era um prazer de cão, que aumentava de cada vez, pelo que ele não estava em poder de se defender de modo nenhum, era um homem manso, pobre coitado, e padre. Todo o tempo ela vinha em igreja, confirmava o falso, mais declarava — edificar o mal. E daí, até que o Padre Ponte de desgosto adoeceu, e morreu em desespero calado... Tudo crime, e ela tinha feito! E agora implorava o perdão de Deus, aos uivos, se esguedelhando, torcendo as mãos, depois as mãos no alto ela levantava.
Mas o missionário, no púlpito, entoou grande o Bendito, louvado seja! — e, enquanto cantando mesmo, fazia os gestos para as mulheres todas saírem da igreja, deixando lá só os homens, porque a derradeira pregação de cada noite era mesmo sempre para os ouvintes senhores homens, como conforme.
E no outro dia, Domingo do Senhor, o arraial ilustrado com arcos e cordas de bandeirolas, e espoco de festa, foguetes muitos, missa cantada, procissão — mas todo o mundo só pensava naquilo. Maria Mutema, recolhida provisória presa na casa-de-escola, não comia, não sossegava, sempre de joelhos, clamando seu remorso, pedia perdão e castigo, e que todos viessem para cuspir em sua cara e dar bordoadas. Que ela — exclamava — tudo isso merecia. No meio-tempo, desenterraram da cova os ossos do marido: se conta que a gente sacolejava a caveira, e a bola de chumbo sacudia lá dentro, até tinia! Tanto por obra de Maria Mutema. Mas ela ficou no São João Leão ainda por mais de semana, os missionários tinham ido embora. Veio autoridade, delegado e praças, levaram a Mutema para culpa e júri, na cadeia de Araçuaí. Só que nos dias em que ainda esteve, o povo perdoou, vinham dar a ela palavras de consolo, e juntos rezarem. Trouxeram a Maria do Padre, e os meninos da Maria do Padre, para perdoarem também, tantos surtos produziam bem-estar e edificação. Mesmo, pela arrependida humildade que ela principiou, em tão pronunciado sofrer, alguns diziam que Maria Mutema estava ficando santa.
João Guimarães Rosa, in Grande sertão: veredas (1956).
Um comentário:
caro amigo Roseano, outro dia ouvi uma pessoa narrar esta estória e fiquei extasiado... ela interpretava magistralmente as palavras, de tal forma que me vi "dentro" da narrativa... bom rever o texto postado por você... um abraço!
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