Não entendo aquele
que aprecia o boi. Aqui se criava antigamente muito guzerá, que para mim tem a
cara de ordinário, mentiroso, criminoso e cínico. Inclusive, a maioria possui
olheiras, mostrando que são perversos devassos de pouca confiança. O sujeito
que já se viu no pasto, ou mesmo no cercado, na companhia de um guzerá, esse
sujeito sabe que não pode virar as costas nem se desprevenir, porque ele pega,
e quem ele pega ele não trata com simpatia. De minha parte, que faço outros
serviços, tudo muito geral nesta fazenda, o único boi que se dá bem comigo é o
boi Bundão, assim mesmo sem essas alegrias todas, porém com bastante sossego,
visto o boi holandês ser pela própria natureza uma criatura fina e de maneiras,
está se vendo que é holandês mesmo. Deve ser que na terra dele tem reis e
rainhas e desde que boi é boi na Holanda, ele vem sendo educado com finura.
Então o boi holandês cobre as vacas dele com muito sentido de sua obrigação, e
é até uma coisa bonita de se assistir, porque a vaca holandesa é também
educadíssima e então quando Bundão está fazendo um serviço com uma delas até
mesmo as visitas gostam de apreciar, porque, no que ele desmonta da vaca, só
falta agradecer e ela dar um sorriso. É uma coisa finíssima. Este Bundão,
aliás, que está ficando velho, quando eu posso boto uns amendoins no bagaço de
cana que ele gosta, que é para ele conseguir desfraldar o instrumento e
continuar com emprego fixo – visto que, no dia que Bundão não for mais
espadachim, adeus Bundão, e possa ser até que eu fique com saudades, sendo um
boi que, não tendo intimidade com ninguém, me trata parecendo que é formado
pelo menos em ginásio. Se um dia eu comer uma buchada dos buchos de Bundão, vou
comer com desgosto. Eu como porque nesta vida é um comendo o outro e é melhor
que a gente coma o boi do que o boi comer a gente, é uma questão política,
mesmo porque o boi não fala.
Antigamente não era igual a hoje, quer
dizer, não era esta organização toda. O touro guzerá encarregado de enxertar as
vacas era um absurdo. Atendendo pelo nome de Nonô de Bombaim, esse touro guzerá
ficava ciscando no meio das vacas da raça dele e, quando uma facilitava, até
parecia que ele estava pagando e tinha direito a qualquer coisa, a vaca nem
achava tempo para fazer a posição, porque ele já vinha de lá soltando fumaça e
completamente armado e uma coisa que eu agradeço a deus é que Deus não me fez
eu nascer vaca daquele guzerá. Inclusive, não foi uma nem duas vezes que os
vaqueiros tinham que acertar a entrância correta, porque ele não queria saber,
ia pincelando onde achasse quarto de vaca. Tipo do boi atrasado, rei da
ignorância. Quando eu me lembro de Nonô de Bombaim tratando as vacas, fico
destremecendo, a vaca sofre muito. Quando o sujeito compara o tratamento que
Bundão dá às vacas holandesas com o tratamento que Nonô dava às vacas guzerás,
aí é que o sujeito vê a diferença entre uma pessoa loura e educada como Bundão
e uma pessoa sem princípios e amulatada, como Nonô. É por essas e outras que,
na próxima encarnação, se Deus quiser e eu merecer, eu volto branco e bem
educado. Não quero fazer como Nonô, que chega e vai lascando a vaca toda, se
bem que ele é muito bem admirado em toda a redondeza e diz o povo que até hoje
tem mulheres que, no entusiasmo de brincar de bicho de duas costas, elogiam o
homem dizendo "dá nela, Nonô!", mas considero essas mulheres todas
umas vacas guzerás, isto é o que considero, pois que sou a favor do carinho,
porradas só quando imploradas ou merecidas verdadeiramente.
Entretanto, com nonôs e bundões e mais
uns quanto outros reprodutores de alguma fama nestas terras, as coisas sempre
foram dentro do normal. O galo às vezes parece que está conversando com a
sombra ou está discutindo eleições ou qualquer coisa, quando que de repente sai
com grande brilhantismo e vai bicando as galinhas e virando na direção do
sobrecu e assim ele faz o trabalho todo em coisa de cinco minutos, igual a uma
faísca. Os ovos sucedentes são pardos, não claros, galados, não pecos, e
fortíssimos para a saúde, ou senão saem pintos e todas as galinhas prosseguem
galinhando como quis Nosso Senhor. Assim, o calango possui dois vergalhos, um
na direita outro na canhota, ficando bem municiada qualquer calanga que venha
pela direita ou pela esquerda, sendo que o calango só pega uma calanga de cada
vez, não se aproveitando de que pode pegar duas. Porque não é uma questão de
vaidade, é um problema de não perder tempo, pois que, se a verdade é que o
calango tem muitas moscas para comer, tem também muitos outros bichos desejosos
de comer o calango, de forma que não se pode facilitar. O beija-flor trepa nos
ares, às vezes de passagem, às vezes cumprimentando e aproveitando, visto o
coração do beija-flor zumbir e ele morrer cedo, beijando flores e o coração
zumbindo. As jegas e as éguas apreciam a cobertura e há casos de jegas que
ficam dando uns coicezinhos no jeque a tarde toda, até conseguirem, e aí rangem
os dentes dão umas babadinhas e ficam grandemente admiradoras do macho, se ele
soube responder bem àqueles coicezinhos. O cágado ronca em cima da cágada, que
tem toda a paciência, porque a construção deles não facilita e dever ser por
isso que o cágado ronca nessas horas. O pato e o porco aplicam roscas e tem
quem diga que a rosca é para estontear a fêmea, que fica olhando, olhando, até
se enroscar completamente. O gato apresenta espinhos que sangram a gata na
puxada, sendo porém o sangramento necessário para a gata emprenhar. O
louva-deus fica parado e, antes mesmo que a louva-deusa esteja pronta, já vai
mastigando o macho e ele cabe todo na barriga dela. Isto tudo se vê por aqui e
muitas mais coisas, desde as lagoas com seus sapos e jias se casando pelas
águas, até os barulhos dos bichos maiores. Foi assim que foi feita a natureza
e, em cada uma juntada, está se sentindo a força.
Pois então, nestes tempos modernos,
estamos desnaturados. Embora eu, que não gosto de boi, não estivesse muito
sabendo até que tudo começou a ser modificado, recebemos diversos doutores e
tudo mais. E não foi assim que, depois de muitos anúncios e forte nervosismo,
levamos a gaiola grande para a estação de trem, parecia até uma festa só
faltando banda de música, para receber o grande touro charolês francês, que
aqui tomou o nome, mesmo antes de chegar, de Alandelão. Todo nome francês
termina em ão, e o nome era para ser Napoleão, que foi outro francês retado,
que invadiu a Inglaterra, escarreirou D. João VI, enfim fez o maior cacete e
não perdoava nada. Mas se preferiu Alandelão, que é um artista da França
muitíssimo cotado e, pelo que eu ouço falar desse Alandelão, era para as vacas
aqui estarem grandemente festejando.
Agora, esse Alandelão daqui, na hora
que eu vi, achei logo que era um animal bastante triste, todo escuro assim,
parecendo de luto. No começo, pensei que era da natureza do boi francês, porque
se sabe que o francês aprecia a safadagem mas tudo na maior decência, não é
como as coisas de Nonô de Bombaim. Mas, mesmo assim, como é que esse boi podia
ser tão triste, sabendo-se que de agora em diante vai ficar instalado igual a
um monarca, com massagem, comidinha, alisamento e vitamina? E, se as vacas para
ele trabalhar não eram vacas francesas da maior fineza, também não eram de se
jogar fora, inclusive sendo começo de verão e estando a maior trepação em todas
as partes da fazenda, até os motucos soltando a lenha nas motucas, os lacraios
nas lacraias e assim vai, para não falar em outros, como os preás, que todo
mundo sabe que quando não estão comendo estão afogando o ganso, seja inverno ou
seja verão. E às vezes o sujeito se veste de preto assim mas não quer dizer
nada, haja visto padre Barretinho, que Deus haja, cala-te boca.
Um emprego como o desse boi muitos de
nós passamos a vida rezando para encontrar e agora ele chega todo triste, quase
uma antipatia. Aquele bicho do tamanho de um elefante atarracado, todo de preto
e com uma cara jururu que fazia pena, quando o natural é que estivesse
sacudindo o rabo, babando um pouco e preparando o ferramental. Mas é assim que
se vê como o animal também tem a sua inteligência, porque esse Alandelão já estava
perfeitamente conhecedor do que ia acontecer e era por isso que não se alegrava
e tinha toda a razão, coitado.
Quando eu soube, tomei um choque. Já
tinha uma semana ou duas que Alandelão estava no seu apartamento, todo
ventilado e cheio de nove-horas, inclusive um aparelho americano para as moscas
não incomodarem ele, e então eu, que passava em busca de uns baldes e umas
gamelas, perguntei quando era que a folga dele ia acabar e quando é que ele ia
sair para cobrir umas vacas.
– Com essa fama toda, está todo mundo
querendo apreciar – disse eu. – Deve ser uma coisa de muita competência.
–Mas ele não vai cobrir vaca nenhuma –
respondeu Dr. Crescêncio, que é uma espécie de engenheiro de vaca, que trabalha
aqui dando orientação e é formado em vaca na faculdade.
– Ô, e o bicho está aqui para quê? Ele
não é reprodutor?
– Um animal desses você acha que a
gente ia deixar esperdiçar direto com as vacas? Não, senhor! Tudo o que sai
dele vale ouro. A gente extrai, bota no gelo e depois enfia nas vacas com uma
seringa. E aí se aproveita tudo.
Nisso, com a cara meio saindo pela
abertura, eu vi que Alandelão já devia saber brasileiro, ou então ter estudado
na França, porque entendeu a conversa toda e ficou ainda mais de beiço
pendurado do que estava antes, uma infelicidade de cortar o coração. Indaguei
como era que se extraía o material, se tinha de enfiar uma agulha de injeção
nos quibas do coitado do animal, mas o Dr. Crescêncio disse que não. Que, de
tantos em tantos dias, o pessoal encarregado ia lá e fazia a manipulação.
– Como é essa manipulação?
– Se você quiser, pode assistir, que
daqui a pouco nós vamos coletar.
– O boi não se aporrinha, não, doutor?
– Que nada, ele está acostumado.
E, de fato, Alandelão, se não ficava
entusiasmado, também não criava dificuldade, estava se vendo que era treinado
na profissão. Ele via a turma de manipulação e já ia abrindo as pernas e
olhando para o outro lado e ai aguardava a extração, tudo muito despachado, sem
nem um suspirinho. Naquela hora, vendo um boi tão prestigiado, cheio de medalha
e tudo, sujeito a ser chamado pelos outros de reprodutor donzelo, dava bastante
pena. No finzinho, os manipuladores ainda davam uma espremidinha, mas ele não
tugia nem mugia. Ficava ali passando humilhação com a melhor cara possível.
Como é que uma criatura pode viver nessa situação – ainda mais um francês?
E, inclusive, pode ser até que na
França a profissão dele seja mais respeitada, mas aqui, nesta esculhambação,
não demorou e ele pegou diversos apelidos – cinco-a-um, mangueira-fria, desconhece-vaca,
come-vento, cassetete-gelado, pinga-na-cumbuca, couriça-de-mão, uma porção
mesmo – , que a gente ria mas sentia que não estava direito zombar de uma
infelicidade do destino alheio.
Foi assim que tivemos o plano de fazer
um benefício a Alandelão, benefício este com a vaca Flor de Mel, pé duro porém
forte de ancas, boa envergadura e vaca já com muita experiência de vida,
inclusive havendo sido, segundo muitos, amante do Nonô de Bombaim e diz o povo
que os dois comiam uns pezinhos de liamba, conhecida por outros como
fumo-de-angola, aliás maconha – o que é
que estamos escondendo – , que aqui nasce feito mato e não deixa de haver quem
faça um fumeirozinho, enfim, diz o povo que os dois comiam uns pezinhos e
ficavam na maior safadagem, isto antes de Nonô ter pegado aftosa numa farra e
ter morrido velho e aftoso e desestimado por todos em geral. Está se
reconhecendo, então, que Flor de Mel não era nenhuma mocinha, mas, em primeiro
lugar, sabe-se que o francês gosta de velha. E, segundo, Flor de Mel estava
sempre disposta, coisa que não se pode dizer de todas as vacas, mesmo elas
sendo vacas ou talvez por isso mesmo.
Então eu e Emanuel e mais o menino
Ruidenor combinamos deixar Flor de Mel no cercado pequeno, que fica perto do
apartamento de Alandelão e, de noite, a gente ia lá e soltava o francês. E dito
e feito, até com luz de lua para completar. Quando a gente abriu a porta, o
bicho tomou um susto, não estava acostumado. E não queria sair de jeito nenhum,
mesmo a gente explicando. Emanuel achou até que a gente devia dar uns piparotes
lá na estrovenga dele para ver se ele se animava, mas todo mundo ficou com medo
de que ele achasse que algum da gente era manipulador e quisesse completar o
serviço todo e um boi deste tamanho a pessoa deve procurar não contrariar.
Afinal, tanto a gente fez que o bicho foi saindo para o cercado, meio
estranhando. Nisso Flor de Mel, que aí foi que eu vi que é mesmo uma velha
assanhadíssima, abriu logo as ventas para o lado de Alandelão e foi chegando,
foi chegando, mas o boi nem deu sinal.
– Será que tem pouco tempo que fizeram
uma manipulação e ele esta desfraquecido? – perguntou Emanuel.
– Que nada, que nada! – disse Ruidenor, que estava doido para ver a
finalização toda. – Bote o bicho para
perto, bote o bicho para perto!
Não sei quantas mil arrobas pesa um
desgraçado daqueles, mas a gente foi puxando e só "vai, Alandelão",
"vai, Alandelão" e Flor de Mel ali dispostíssima e só faltou a gente
botar um macaco de caminhão debaixo do infeliz para ele levantar, mas não tinha
jeito. Até que, na hora já de todo mundo desistir, ele deu uma olhada para um
lado, uma olhada para o outro, uma olhada para mim, outra olhada para Emanuel e
aí fez aquele movimentozinho fraco para subir na vaca, que mais que depressa
ficou na posição certa, que a diaba não tinha desistido de papar o francês.
– Lá vai ele, lá vai ele! Tenha fé,
Alandelão!
Mas parece que o boi francês é um boi
de pouca fé, porque, bem no meio daquela subidinha fraquinha, que ninguém nem
estava acreditando que ia dar na altura de Flor de Mel, Alandelão revirou os
olhos, fez um barulhinho na garganta e se despejou todo no chão.
– Vigessantíssima, que deve ter para mais de setecentos mil contos aí
desparramando no chão! – disse Emanuel. –
Vamos levar esse boi lá para dentro!
E, de fato, numa situação dessas, só
podia ser que a gente tinha de levar o bicho de volta, ele com a cara
envergonhada e Flor de Mel aborrecidíssima e, pelo visto, com muita saudade de
Nonô de Bombaim. No outro dia, bico calado, por causa do esperdício da
matéria-prima de Alandelão. E parece mesmo que ninguém notou, porque nós três
ficamos nervosos na hora da manipulação seguinte, mas Alandelão trabalhou do
mesmo jeito e ninguém se queixou da produção dele. Só nós três é que podíamos
notar que, quando ele via a gente, ficava todo sem graça, mas a gente
compreendeu e respeitou, de forma que ninguém falou nada. E, de qualquer
maneira, depois se descobriu que Alandelão era uma sociedade, porque ninguém
tinha dinheiro para comprar ele sozinho, e aí ele passava produzindo numa
fazenda e depois em outra e outra e assim por diante. E aí chegou o dia de
botarmos ele na mesma gaiola e levarmos ele para o trem. Não se pode dizer que
ele deixou amizades aqui, mas também não fez desafetos. E nós três estavam
todos sabendo que ele nasceu para a profissão dele, só sabia trabalhar daquele
jeito, tinha especialização, que é que se ia fazer. Assim mesmo, Emanuel passou
a mão na cabeça dele na hora do embarque e disse: "Deus que lhe dê uma boa
mão, Alandelão". E o dono aqui da fazenda também viu, mas nem perguntou,
todo satisfeito com o dinheiro que ganhou com o trabalho do francês. Quando o
trem saiu, ele cantou baixinho:
– Alandelão de la Patri-i-i-i-e!
Ele pensou que eu não entendi, mas eu
entendi. Ele cantou um pedaço do hino da França, somente trocando o Napoleão
pelo Alandelão. Em francês, quer dizer "Alandelão de nossa terra". Lá
deles.
João Ubaldo Ribeiro, in Livro de
Histórias (1981).
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