Aquele carro parara na linha de resguardo, desde a véspera, tinha vindo com o expresso
do Rio, e estava lá, no desvio de dentro, na esplanada da estação. Não era um
vagão comum de passageiros, de primeira, só que mais vistoso, todo novo. A
gente reparando, notava as diferenças. Assim repartido em dois, num dos cômodos
as janelas sendo de grades, feito as de cadeia, para os presos. A gente sabia
que, com pouco, ele ia rodar de volta, atrelado ao expresso daí de baixo,
fazendo parte da composição. Ia servir para levar duas mulheres, para longe,
para sempre. O trem do sertão passava às 12h45m.
As
muitas pessoas já estava de ajuntamento, em beira do carro, para esperar. As
pessoas não queriam poder ficar se entristecendo, conversavam, cada um
porfiando no falar com sensatez, como sabendo mais do que os outros a prática
do acontecer das coisas. Sempre chegava mais povo — o movimento. Aquilo quase
no fim da esplanada, do lado do curral de embarque de bois, antes da guarita do
guarda-chaves, perto dos empilhados de lenha. Sorôco ia trazer as duas,
conforme. A mãe de Sorôco era de idade, com para mais de uns setenta. A filha,
ele só tinha aquela. Sorôco era viúvo. Afora essas, não se conhecia dele o parente
nenhum.
A
hora era de muito sol — o povo caçava jeito de ficarem debaixo da sombra das
árvores de cedro. O carro lembrava um canoão no seco, navio. A gente olhava:
nas reluzências do ar, parecia que ele estava torto, que nas pontas se
empinava. O borco bojudo do telhadinho dele alumiava em preto. Parecia
coisa de invento de muita distância, sem piedade nenhuma, e que a gente não
pudesse imaginar direito nem se acostumar de ver, e não sendo de ninguém. Para
onde ia, no levar as mulheres, era para um lugar chamado Barbacena, longe. Para
o pobre, os lugares são mais longe.
O
Agente da estação apareceu, fardado de amarelo, com o livro de capa preta e as
bandeirinhas verde e vermelha debaixo do braço. — "Vai ver se botaram água fresca no carro..." — ele mandou.
Depois, o guarda-freios andou mexendo nas mangueiras de engate. Alguém deu
aviso: — "Eles vêm!..." Apontavam,
da Rua de Baixo, onde morava Sorôco. Ele era um homenzão, brutalhudo de corpo,
com a cara grande, uma barba, fiosa, encardida em amarelo, e uns pés, com
alpercatas: as crianças tomavam medo dele; mais, da voz, que era quase pouca,
grossa, que em seguida se afinava. Vinham vindo, com o trazer de comitiva.
Aí, paravam. A filha —
a moça — tinha pegado a cantar, levantando os braços, a cantiga não vigorava
certa, nem no tom nem no se-dizer das palavras — o nenhum. A moça punha os
olhos no alto, que nem os santos e os espantados, vinha enfeitada de
disparates, num aspecto de admiração. Assim com panos e papéis, de diversas
cores, uma carapuça em cima dos espalhados cabelos, e enfunada em tantas roupas
ainda de mais misturas, tiras e faixas, dependuradas — virundangas: matéria de
maluco. A velha só estava de preto, com um fichu preto, ela batia com a cabeça,
nos docementes. Sem tanto que diferentes, elas se assemelhavam.
Sorôco
estava dando o braço a elas, uma de cada lado. Em mentira, parecia entrada em
igreja, num casório. Era uma tristeza. Parecia enterro. Todos ficavam de parte,
a chusma de gente não querendo afirmar as vistas, por causa daqueles transmodos
e despropósitos, de fazer risos, e por conta de Sorôco — para não parecer pouco
caso. Ele hoje estava calçado de botinas, e de paletó, com chapéu grande,
botara sua roupa melhor, os maltrapos. E estava reportado e atalhado,
humildoso. Todos diziam a ele seus respeitos, de dó. Ele respondia: — "Deus vos pague essa despesa..."
O
que os outros se diziam: que Sorôco tinha tido muita paciência. Sendo que não
ia sentir falta dessas transtornadas pobrezinhas, era até um alívio. Isso não
tinha cura, elas não iam voltar, nunca mais. De antes, Sorôco aguentara de
repassar tantas desgraças, de morar com as duas, pelejava. Daí,
com os anos, elas pioraram, ele não dava mais conta, teve de chamar ajuda, que
foi preciso. Tiveram que olhar em socorro dele, determinar de dar as providências, de mercê. Quem pagava tudo era o Governo, que tinha mandado o carro. Por forma
que, por força disso, agora iam remir com as duas, em hospícios. O se
seguir.
De
repente, a velha se desapareceu do braço de Sorôco, foi se sentar no degrau da
escadinha do carro. — "Ela não faz
nada, seo Agente..." — a voz de Sorôco estava muito branda: — "Ela não acode, quando a gente
chama..." A moça, aí, tornou a cantar, virada para o povo, o ao ar, a
cara dela era um repouso estatelado, não queria dar-se em espetáculo, mas
representava de outroras grandezas, impossíveis. Mas a gente viu a velha olhar
para ela, com um encanto de pressentimento muito antigo — um amor extremoso. E,
principiando baixinho, mas depois puxando pela voz, ela pegou a cantar, também,
tomando o exemplo, a cantiga mesma da outra, que ninguém não entendia. Agora
elas cantavam junto, não paravam de cantar.
Aí
que já estava chegando a horinha do trem, tinham de dar fim aos aprestes, fazer
as duas entrar para o carro de janelas enxequetadas de grades. Assim, num
consumiço, sem despedida nenhuma, que elas nem haviam de poder entender. Nessa
diligência, os que iam com elas, por bem-fazer, na viagem comprida, eram o
Nenêgo, despachado e animoso, e o José Abençoado, pessoa de muita cautela,
estes serviam para ter mão nelas, em toda juntura. E subiam também no carro uns
rapazinhos, carregando as trouxas e malas, e as coisas de comer, muitas, que
não iam fazer míngua, os embrulhos de pão. Por derradeiro, o Nenêgo ainda se
apareceu na plataforma, para os gestos de que tudo ia em ordem. Elas não haviam
de dar trabalhos.
Agora,
mesmo, a gente só escutava era o acorçoo do canto, das duas, aquela chirimia,
que avocava: que era um constado de enormes diversidades desta vida, que podiam
doer na gente, sem jurisprudência de motivo nem lugar, nenhum, mas pelo antes,
pelo depois.
Sorôco.
Tomara
aquilo se acabasse. O trem chegando, a máquina manobrando sozinha para vir
pegar o carro. O trem apitou, e passou, se foi, o de sempre.
Sorôco
não esperou tudo se sumir. Nem olhou. Só ficou de chapéu na mão, mais de barba
quadrada, surdo — o que nele mais espantava. O triste do homem, lá, decretado,
embargando-se de poder falar algumas suas palavras. Ao sofrer o assim das
coisas, ele, no oco sem beiras, debaixo do peso, sem queixa, exemploso. E lhe
falaram: — "O mundo está dessa
forma..." Todos, no arregalado respeito, tinham as vistas neblinadas.
De repente, todos gostavam demais de Sorôco.
Ele
se sacudiu, de um jeito arrebentado, desacontecido, e virou, pra ir s'embora.
Estava voltando para casa, como se estivesse indo longe, fora de conta.
Mas,
parou. Em tanto que se esquisitou, parecia que ia perder o de si, parar de ser.
Assim num excesso de espírito, fora de sentido. E foi o que não se podia
prevenir: quem ia fazer siso naquilo? Num rompido — ele começou a cantar,
alteado, forte, mas sozinho para si — e era a cantiga, mesma, de desatino, que
as duas tanto tinham cantado. Cantava continuando.
A
gente se esfriou, se afundou — um instantâneo. A gente... E foi sem combinação,
nem ninguém entendia o que se fizesse: todos, de uma vez, de dó do Sorôco,
principiaram também a acompanhar aquele canto sem razão. E com as vozes tão
altas! Todos caminhando, com ele, Sorôco, e canta que cantando, atrás dele, os
mais de detrás quase que corriam, ninguém deixasse de cantar. Foi o de não sair
mais da memória. Foi um caso sem comparação.
A
gente estava levando agora o Sorôco para a casa dele, de verdade. A gente, com
ele, ia até aonde que ia aquela cantiga.
João Guimarães Rosa in Primeiras
estórias (1962).
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Um comentário:
Guimarães Rosa, a melhor das companhias!abs
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