quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

O jardim de veredas que se bifurcam - Jorge Luis Borges

                    A Victoria Ocampo

          Na página 22 da História da Guerra da Europa, de Liddell Hart, lê-se que uma ofensiva de treze divisões britânicas (apoiadas por mil e quatrocentas peças de artilharia) contra a linha Serre-Montauban tinha sido planeada para o dia vinte e quatro de julho de 1916 e teve de se adiar para a manhã do dia vinte e nove. Foram as chuvas torrenciais (anota o capitão Liddell Hart) que provocaram esse atraso - nada significativo, certamente. A declaração seguinte, ditada, revista e assinada pelo doutor Yu Tsun, antigo catedrático de inglês na Hochschule de Tsingtao, lança uma insuspeitada luz sobre o caso. Faltam as duas páginas iniciais:
          “... e pendurei o fone. Imediatamente após, reconheci a voz que respondera em alemão. Era a do capitão Richard Madden. Madden, no apartamento de Viktor Runeberg, significava o fim das nossas ansiedades e - mas isto parecia muito secundário, ou devia parecer-me - também das nossas vidas. Queria dizer que Runeberg fora preso, ou assassinado (1). Antes que se pusesse o sol desse dia, eu incorreria na mesma sorte. Madden era implacável. Melhor dizendo, era obrigado a ser implacável. Irlandês às ordens da Inglaterra, homem acusado de moleza e talvez até de traição, como não iria abraçar e agradecer este milagroso favor: a descoberta, a captura e quiçá a morte, de dois agentes do Império Alemão? Subi ao meu quarto; absurdamente fechei a porta à chave e deitei-me de costas na estreita cama de ferro. Na janela viam-se os telhados de sempre e o sol nublado das seis. Pareceu-me incrível que esse dia sem premonições nem símbolos fosse o da minha morte implacável. Apesar de ter morrido o meu pai, apesar de eu ter passado a infância num simétrico jardim de Hai Feng, ia morrer agora? Depois refleti que todas as coisas sucedem a uma pessoa precisamente agora. Passam séculos e séculos e só no presente acontecem os fatos; há inúmeros homens no ar, na terra e no mar, e tudo o que realmente sucede, sucede a mim... A quase intolerável lembrança do rosto cavalar de Madden aboliu estas divagações. Em meio a meu ódio e meu terror (agora não me interessa falar de terror: agora que enganei Richard Madden, agora que a minha garganta anseia pela corda) pensei que esse guerreiro tumultuoso e sem dúvida feliz não suspeitava que eu possuía o Segredo. O nome do lugar preciso do novo parque de artilharia britânico sobre o Ancre. Uma ave rasgou o céu pardo e cegamente traduzi-o por um aeroplano e esse aeroplano por muitos (no céu francês) aniquilando o parque de artilharia com bombas verticais. Se minha boca, antes que a desfizesse uma bala, pudesse gritar o nome de modo que o ouvissem na Alemanha... Minha voz humana era muito fraca. Como fazê-la chegar ao ouvido do Chefe? Ao ouvido daquele homem doente e odioso, que de Runeberg e de mim só sabia que estávamos em Staffordshire e que em vão esperava notícias nossas no seu árido gabinete de Berlim, a examinar infinitamente os jornais... Disse em voz alta: ‘Devo fugir’. Levantei-me sem ruído, numa inútil perfeição de silêncio, como se já estivesse sob a mira de Madden. Uma coisa - talvez a simples ostentação de provar que os meus recursos eram nulos - fez-me revistar os bolsos. Encontrei o que sabia que iria encontrar. O relógio norte-americano, a corrente de níquel e a moeda quadrangular, o chaveiro com as comprometedoras chaves inúteis do apartamento de Runeberg, a caderneta, uma carta que resolvi destruir imediatamente (e que não destruí), o passaporte falso, uma coroa, dois xelins e alguns pennies, o lápis azul-vermelho, o lenço, o revólver com uma bala. Absurdamente o empunhei e sopesei para me dar coragem. Pensei vagamente que um tiro se pode ouvir muito longe. Em dez minutos o meu plano amadureceu. A lista telefônica deu-me o nome da única pessoa capaz de transmitir a notícia: vivia num subúrbio de Fenton, a menos de meia hora de trem.
          “Sou um homem covarde. Agora o digo, agora que levei a bom termo um plano que ninguém deixará de qualificar de arriscado. Sei que foi terrível a sua execução. Não o fiz pela Alemanha, não. Nada me importa um país bárbaro que me obrigou à abjeção de me tornar espião. Além disso, sei de um homem da Inglaterra - um homem modesto - que para mim não é menos que Goethe. Não falei com ele mais de uma hora, mas durante uma hora foi Goethe... Fi-lo porque sentia que o Chefe tinha pouca consideração pela gente da minha raça - pelos inumeráveis antepassados que em mim confluem. Queria provar-lhe que um amarelo podia salvar os seus exércitos. Além disso, tinha de fugir do capitão. As suas mãos e a sua voz podiam bater à minha porta a qualquer momento. Vesti-me sem ruído, disse-me adeus no espelho, desci, esquadrinhei a rua tranquila e saí. A estação não ficava muito longe da casa, mas achei preferível apanhar um carro. Argumentei que assim corria menos perigo de ser reconhecido; o fato é que na rua deserta me sentia visível e vulnerável, infinitamente. Lembro-me de ter dito ao motorista que parasse um pouco antes da entrada principal. Saí do carro com lentidão voluntária e quase penosa; ia à aldeia de Ashgrove, mas tirei bilhete para uma estação mais longe. O trem saía daí a pouquíssimos minutos, às oito e cinqüenta. Apressei-me; o seguinte partiria às nove e meia. Não havia quase ninguém na plataforma. Percorri os vagões: lembro-me de uns lavradores, uma mulher de luto, um jovem que lia com fervor os Anais de Tácito, um soldado ferido e feliz. O trem, finalmente, partiu. Um homem que reconheci correu em vão até o limite da plataforma. Era o capitão Richard Madden. Aniquilado, trêmulo, encolhi-me na outra ponta do banco, longe do temido vidro da janela.
          “Dessa aniquilação passei a uma felicidade quase abjeta. Disse para comigo que já estava metido no duelo e que ganhara o primeiro assalto, ao enganar, nem que fosse por quarenta minutos, nem que fosse por um favor do acaso, o ataque do meu adversário. Argumentei que essa vitória mínima anunciava a vitória total. Concluí que não era mínima, dado que sem essa diferença preciosa que o horário dos comboios me oferecia, eu estaria na prisão, ou morto. Argumentei (de modo não menos sofístico) que a minha covarde felicidade provava que eu era homem capaz de levar a aventura a bom termo. Desta fraqueza tirei forças que não me abandonaram. Prevejo que o homem se há de resignar dia a dia a tarefas cada vez mais atrozes; em breve não haverá senão guerreiros e bandidos; dou-lhes este conselho: ‘O executor de uma empresa atroz tem de imaginar que já a cumpriu, tem de se impor um futuro que seja irrevogável como o passado’. Assim procedi eu, enquanto os meus olhos de homem já morto registavam o fluir daquele dia que era talvez o último, e a noite a espalhar-se. O trem corria com doçura, por entre freixos. Parou, quase no meio do campo. Ninguém gritou o nome da estação. ‘Ashgrove?’ perguntei a uns rapazinhos na plataforma. ‘Ashgrove’, responderam. Desci.
          “Uma lâmpada iluminava a plataforma, mas os rostos dos meninos ficavam na zona de sombra. Um me perguntou: ‘O senhor vai à casa do doutor Stephen Albert?’ Sem esperar por resposta, outro disse: ‘A casa fica longe daqui, mas o senhor não se perde se for por esse caminho à esquerda e em cada encruzilhada do caminho virar à esquerda’. Atirei-lhes uma moeda (a última), desci uns degraus de pedra e entrei no solitário caminho. Este, lentamente, era a descer. Era de terra elementar, por cima dele juntavam-se os ramos, e a lua baixa e circular parecia acompanhar-me.
         “Por um instante, pensei que Richard Madden tinha de qualquer modo penetrado no meu desesperado desígnio. Em breve compreendi que era impossível. O conselho de virar sempre à esquerda fez-me lembrar que tal era o procedimento comum para descobrir o pátio central de certos labirintos. Alguma coisa entendo de labirintos: não é em vão que sou bisneto daquele Tsui Pên que foi governador de Yunan e que renunciou ao poder temporal para escrever um romance que fosse ainda mais populoso que o Hung Lu Meng e para edificar um labirinto em que se perdessem todos os homens. Treze anos dedicou a estes heterogêneos esforços, mas a mão de um forasteiro assassinou-o e o seu romance não fazia sentido e ninguém encontrou o labirinto. Foi debaixo de árvores inglesas que meditei nesse labirinto perdido: imaginei-o inviolado e perfeito no cume secreto de uma montanha, imaginei-o apagado por arrozais ou debaixo da água, imaginei-o infinito, não já de quiosques oitavados e de caminhos em voltas, mas de rios e províncias e reinos... Pensei num labirinto de labirintos, num sinuoso labirinto crescente que abrangesse o passado e o porvir e que envolvesse de algum modo os astros. Absorto nestas ilusórias imagens, esqueci do meu destino de perseguido. Senti-me, por um tempo indeterminado, conhecedor abstrato do mundo. O vago e vivo campo, a Lua, os restos da tarde, agiram sobre mim; igualmente o declive que eliminava qualquer possibilidade de cansaço. A tarde estava íntima, infinita. O caminho descia e bifurcava-se, por entre os prados já confusos. Uma música aguda e como que silábica aproximava-se e afastava-se no vaivém do vento, enfraquecida pelas folhas e pela distância. Pensei que um homem pode ser inimigo de outros homens, de outros momentos de outros homens, mas não de um país: não de vaga-lumes, palavras, jardins, cursos de água, poentes. Cheguei assim a um alto portão enferrujado. Por entre as grades decifrei uma alameda e uma espécie de pavilhão. Compreendi logo duas coisas, a primeira trivial, a segunda quase incrível: a música vinha do pavilhão, e a música era chinesa. Por isso, eu aceitara-a plenamente, sem lhe prestar atenção. Não me lembro se havia uma sineta ou uma campainha ou se chamei batendo palmas. A contínua crepitação da música prosseguiu.
          “Mas do fundo da íntima casa uma lanterna aproximava-se: uma lanterna que os troncos riscavam e às vezes anulavam, uma lanterna de papel, que tinha a forma dos tambores e a cor da Lua. Trazia-a um homem alto. Não lhe vi o rosto, porque a luz me cegava. Abriu o portão e disse lentamente em meu idioma:
          “- Vejo que o piedoso Hsi Pêng se empenha em atenuar a minha solidão. Sem dúvida o senhor desejará ver o jardim?
          “Reconheci o nome de um dos nossos cônsules e repeti desconcertado:
          “- O jardim?
          “- O jardim dos caminhos que se bifurcam.
         “Algo se agitou na minha memória e pronunciei com incompreensível segurança:
          “- O jardim do meu antepassado Tsui Pên.
          “- Seu antepassado? Seu ilustre antepassado? Entre.
          “O úmido caminho ziguezagueava como os da minha infância. Chegamos a uma biblioteca de livros orientais e ocidentais. Reconheci, encadernados em seda amarela, alguns tomos manuscritos da Enciclopédia Perdida que dirigiu o Terceiro Imperador da Dinastia Luminosa e que nunca foi dada ao prelo. O disco do gramofone rodava junto de uma fênix de bronze. Lembro-me também de um vaso famille rose e de outro, anterior de muitos séculos, dessa cor azul que os nossos artífices copiaram dos oleiros da Pérsia...
          “Stephen Albert observava-me, sorridente. Era (já o disse) muito alto, de feições afiladas, de olhos cinzentos e barba grisalha. Havia nele algo de sacerdote e também de marinheiro; depois contou-me que fora missionário em Tientsin ‘antes de aspirar a sinólogo’.
          “Sentamo-nos; eu num baixo e comprido divã; ele de costas para a janela e para um alto relógio circular. Calculei que não menos de uma hora demoraria a chegar o meu perseguidor, Richard Madden. A minha determinação irrevogável podia esperar.
          “- Espantoso destino o de Tsui Pên - disse Stephen Albert. – Governador da sua província natal, douto em astronomia, em astrologia e na interpretação infatigável dos livros canônicos, xadrezista, famoso poeta e calígrafo: tudo abandonou para compor um livro e um labirinto. Renunciou aos prazeres da opressão, da justiça, do numeroso leito, dos banquetes e até da erudição e enclausurou-se durante treze anos no Pavilhão da Límpida Solidão. À sua morte, os herdeiros não encontraram senão manuscritos caóticos. A família, como porventura o senhor não ignora, quis entregá-los ao fogo; mas o seu testamenteiro - um monge taoísta ou budista - insistiu na publicação.
          “- Nós do sangue de Tsui Pên - repliquei - continuamos a execrar esse monge. A publicação foi insensata. O livro é um acervo indeciso de rascunhos contraditórios. Examinei-o umas vezes: no terceiro capítulo morre o herói, no quarto está vivo. Quanto à outra empresa de Tsui Pên, ao seu Labirinto...
          “- Aqui está o labirinto – disse, apontando-me uma alta escrivaninha lacada.
          “- Um labirinto de marfim! - exclamei. - Um labirinto mínimo...
          “- Um labirinto de símbolos - corrigiu. - Um invisível labirinto de tempo. A mim, bárbaro inglês, foi dado revelar esse mistério diáfano. Ao fim de mais de cem anos, os pormenores são irrecuperáveis, mas não é difícil conjeturar o que sucedeu. Tsui Pên teria dito uma vez: ‘Retiro-me para escrever um livro’. E outra: ‘Retiro-me para construir um labirinto’. Todos imaginaram duas obras; ninguém pensou que o livro e o labirinto eram um único objeto. O Pavilhão da Límpida Solidão erguia-se no centro de um jardim talvez intrincado; o fato pode ter sugerido aos homens um labirinto físico. Tsui Pên morreu; ninguém, nas amplas terras que foram suas, deu com o labirinto; a confusão do romance sugeriu-me que era esse o labirinto. Houve duas circunstâncias que me deram a correta solução do problema. Uma: a curiosa lenda de que Tsui Pên se propusera um labirinto que fosse rigorosamente infinito. Outra: um fragmento de uma carta que descobri.
          “Albert levantou-se. Por uns instantes, virou-me as costas; abriu uma gaveta da áurea e enegrecida escrivaninha. Voltou com um papel que fora carmesim; agora um quadriculado rosado e tênue. Era justa a fama caligráfica de Tsui Pên. Li com incompreensão e fervor estas palavras que com minucioso pincel redigira um homem do meu sangue: ‘Deixo aos vários porvires (não a todos) o meu jardim dos caminhos que se bifurcam’.
          “Devolvi a folha em silêncio. Albert prosseguiu:
          “- Antes de exumar esta carta, eu perguntara-me de que maneira pode um livro ser infinito. Não conjeturei outro procedimento senão o de um volume cíclico, circular. Um volume cuja última página fosse idêntica à primeira, com a possibilidade de continuar indefinidamente. Lembrei-me também da noite que está no centro das Mil e uma Noites, quando a rainha Xerezade (por uma mágica distração do copista) se põe a relatar textualmente a história das Mil e uma Noites, com o risco de chegar outra vez à noite na qual está fazendo o relato, e assim por diante até o infinito. Imaginei também uma obra platônica, hereditária, transmitida de pai para filho, em que cada novo indivíduo acrescentasse um capítulo ou corrigisse com piedoso cuidado a página dos antepassados. Estas conjeturas distraíram-me; mas nenhuma parecia corresponder, nem sequer de um modo longínquo, aos contraditórios capítulos de Tsui Pên. No meio desta perplexidade, enviaram-me de Oxford o manuscrito que o senhor acabou de examinar. Detive-me, como é natural, na frase: ‘Deixo aos vários porvires (não a todos) o meu jardim dos caminhos que se bifurcam’. Quase de imediato compreendi; o jardim dos caminhos que se bifurcam era o romance caótico; a frase vários porvires (não a todos) sugeriu-me a imagem da bifurcação no tempo, e não no espaço. A releitura geral da obra confirmou esta teoria. Em todas as ficções, sempre que um homem se defronta com diversas alternativas, opta por uma e elimina as outras; na do quase inextricável Tsui Pên, opta - simultaneamente - por todas. Cria, assim, diversos porvires, diversos tempos, que também proliferam e se bifurcam. Daí as contradições do romance. Fang, digamos, tem um segredo, um desconhecido bate à sua porta, Fang resolve matá-lo. Naturalmente, há vários desenlaces possíveis. Fang pode matar o intruso, o intruso pode matar Fang, ambos podem salvar-se, ambos podem morrer, etc. Na obra de Tsui Pên, acontecem todos os desenlaces; cada um é o ponto de partida de outras bifurcações. Às vezes os caminhos desse labirinto convergem: por exemplo, o senhor chega a esta casa, mas num dos passados possíveis o senhor é meu inimigo, noutro meu amigo. Se o senhor se resignar à minha pronúncia incurável, leremos umas páginas.
          “Seu rosto, no vívido círculo da lâmpada, era sem dúvida o de um ancião, mas com algo de inabalável e até de imortal. Leu com lenta precisão duas redações de um mesmo capítulo épico. Na primeira, um exército marcha para uma batalha através de uma montanha deserta; o horror das pedras e da sombra fá-lo desprezar a vida e consegue com facilidade a vitória; na segunda, o mesmo exército atravessa um palácio em que há uma festa; a resplandecente batalha parece-lhes uma continuação da festa e conseguem a vitória. Eu ouvia com digna veneração estas velhas ficções, talvez menos admiráveis que o fato de as ter ideado o meu sangue e de um homem de um império longínquo mas restituir, no decorrer de uma desesperada aventura, numa ilha ocidental. Lembro-me das palavras finais, repetidas em cada redação como um mandamento secreto: ‘Assim combateram os heróis, tranqüilo o admirável coração, violenta a espada, resignados a matar e a morrer’.  
          “A partir desse instante, senti à minha volta e no meu obscuro corpo uma invisível e intangível palpitação. Não a palpitação dos divergentes, paralelos e finalmente coalescentes exércitos, mas uma agitação mais inacessível, mais íntima e que eles de certo modo prefiguravam. Stephen Albert prosseguiu:
          “- Não creio que o seu ilustre antepassado jogasse ociosamente com as variações. Não acho verosímil que tenha sacrificado treze anos à infinita execução de uma experiência retórica. No seu país, o romance é um gênero subalterno; naquele tempo era um gênero desprezível. Tsui Pên foi um romancista genial, mas também foi um homem de letras que sem dúvida não se considerou apenas um simples romancista. O testemunho dos seus contemporâneos proclama - e fartamente o confirma sua vida – suas inclinações metafísicas e místicas. A controvérsia filosófica usurpa boa parte do seu romance. Sei que de todos os problemas, nenhum outro o inquietou e o ocupou tanto como o abismal problema do tempo. Ora bem, é esse o único problema que não figura nas páginas do Jardim. Nem sequer usa a palavra que significa tempo. Como explica o senhor essa voluntária omissão?
          “Propus várias soluções; todas insuficientes. Discutimo-las; por fim, Stephen Albert disse-me:
          “- Numa charada cujo tema é o xadrez, qual é a única palavra proibida?
          “Refleti um momento e respondi:
          “- A palavra xadrez.
          “- Precisamente - disse Albert. - O jardim dos caminhos que se bifurcam é uma enorme charada, ou parábola, cujo tema é o tempo; essa causa recôndita proíbe-lhe a menção do seu nome. Omitir sempre uma palavra, recorrer a metáforas ineptas e a perífrases evidentes, é talvez o modo mais enfático de indicá-la. É o modo tortuoso que preferiu, em cada um dos meandros do seu infatigável romance, o oblíquo Tsui Pên. Comparei centenas de manuscritos, corrigi os erros que a negligência dos copistas introduziu, conjeturei o plano desse caos, restabeleci, julguei restabelecer a ordem primordial, traduzi a obra inteira: resulta-me que não emprega uma única vez a palavra tempo. A explicação é óbvia: O jardim dos caminhos que se bifurcam é uma imagem incompleta, mas não falsa, do universo tal como o concebia Tsui Pên. Ao contrário de Newton e de Schopenhauer, o seu antepassado não acreditava num tempo uniforme, absoluto. Acreditava em infinitas séries de tempos, numa rede crescente e vertiginosa de tempos divergentes, convergentes e paralelos. Essa trama de tempos que se aproximam, se bifurcam, se cortam ou que secularmente se ignoram, abrange todas as possibilidades. Nós não existimos na maior parte desses tempos; nalguns deles existe o senhor e eu não; noutros, eu, e não o senhor; noutros ainda, existimos os dois. Neste, que um favorável acaso me proporciona, o senhor chegou à minha casa; noutro, o senhor, ao atravessar o jardim, deu comigo morto; e noutro, eu digo estas mesmas palavras, mas sou um erro, um fantasma.
          “- Em todos - articulei não sem um certo tremor - agradeço e venero a sua recriação do jardim de Tsui Pên.
          “- Não em todos - murmurou com um sorriso. - O tempo bifurca-se perpetuamente na direção de inumeráveis futuros. Num deles sou seu inimigo.
          “Voltei a sentir aquela palpitação de que falei. Pareceu-me que o úmido jardim que rodeava a casa estava saturado até ao infinito de pessoas invisíveis. Essas pessoas eram Albert e eu, secretos, ocupadíssimos e multiformes noutras dimensões do tempo. Levantei os olhos e o tênue pesadelo dissipou-se. No amarelo e negro jardim havia um único homem; mas esse homem era forte como uma estátua, mas esse homem avançava pelo caminho e era o capitão Richard Madden.
          “- O futuro já existe - respondi -, mas eu sou seu amigo. Posso examinar outra vez a carta?
          “Albert levantou-se. Alto, abriu a gaveta da alta escrivaninha; virou-me por um momento as costas. Eu já tinha preparado o revólver. Disparei com extremo cuidado: Albert tombou, sem um ai, imediatamente. Juro que sua morte foi instantânea: uma fulminação.
          “O resto é irreal, insignificante. Nesse momento irrompeu Madden e prendeu-me. Fui condenado à forca. Abominavelmente venci: comuniquei a Berlim o secreto nome da cidade que devem atacar. Ontem bombardearam-na; li isso nos mesmos jornais que apresentaram à Inglaterra o enigma de o sábio sinólogo Stephen Albert ter morrido assassinado por um desconhecido, Yu Tsun. O Chefe decifrou esse enigma. Sabe que o meu problema era indicar (através do estrépito da guerra) a cidade que se chama Albert e que não achei outro meio senão matar uma pessoa com esse nome. Não sabe (ninguém pode saber) a minha imensa contrição e cansaço.


Jorge Luis Borges, in Ficções (1941).

  
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(1) Hipótese odiosa e ridícula. O espião prussiano Hans Rabener, codinome Viktor Runeberg, agrediu com uma pistola automática o portador da ordem de prisão, capitão Richard Madden. Este, em legítima defesa, causou-lhe ferimentos que vieram a determinar sua morte. (Nota do editor).

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