sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

O bruxo preterido - Jorge Luis Borges

          Havia em Santiago um deão que desejava ardentemente aprender a arte da magia. Ouviu dizer que Dom Illán, de Toledo, a conhecia mais do que ninguém, e foi a Toledo procurá-lo.
          No mesmo dia em que chegou, dirigiu-se à casa de Dom Illán e o encontrou lendo em um cômodo afastado. Este o recebeu com bondade e lhe pediu que adiasse o motivo de sua visita até depois de comerem. Mostrou-lhe o alojamento fresco e disse que sua vinda o alegrava muito. Depois de comer, o deão contou a razão daquela visita e rogou que lhe ensinasse a ciência mágica. Dom Illán disse que adivinhava ser ele deão, homem de boa situação e belo futuro, por quem temia ser logo esquecido. O deão prometeu e assegurou que jamais esqueceria aquela mercê, e estaria sempre às suas ordens. Resolvido o assunto, explicou Dom Illán que as artes mágicas não se podiam aprender senão em lugar apartado, e tomando-o pela mão levou-o a um quarto contíguo, em cujo soalho havia uma grande argola de ferro. Disse antes à criada que preparasse perdizes para o jantar, porém que não as pusesse para assar senão quando lhe ordenassem. Juntos levantaram a argola e desceram por uma escada de pedra bem lavrada, até que ao deão pareceu terem descido tanto que o leito do Tejo estava sobre eles. Ao pé da escada havia uma cela e depois uma biblioteca e depois uma espécie de gabinete com instrumentos mágicos. Examinavam os livros, e nisso estavam quando entraram dois homens com uma carta para o deão, escrita pelo bispo seu tio, na qual lhe fazia saber que estava muito doente e que, se quisesse encontrá-lo vivo, não demorasse. Ao deão contrariaram muito essas novas, primeiro pela enfermidade do tio, depois por ser obrigado a interromper os estudos. Optou por escrever uma desculpa e mandou-a ao bispo. Três dias depois, chegaram alguns homens de luto com outras cartas para o deão, nas quais se lia ter o bispo falecido, que estavam elegendo o sucessor e esperavam, com a graça de Deus, que fosse ele o eleito. Diziam também que não se incomodasse em voltar, posto que parecia muito melhor que o elegessem em sua ausência.
          Passados dez dias, vieram dois escudeiros muito bem vestidos, que se atiraram a seus pés, beijaram-lhe as mãos e o saudaram como bispo. Quando Dom Illán viu essas coisas, dirigiu-se com muita alegria ao novo prelado e lhe disse que agradecia ao Senhor que tão boas novas chegassem a sua casa. Depois pediu-lhe o decanato vacante para um de seus filhos. O bispo fez-lhe saber que havia reservado o decanato para seu próprio irmão, mas que sempre havia determinado favorecê-lo, e que partissem juntos para Santiago.
          Foram os três para Santiago, onde os receberam com honrarias. Seis meses depois, recebeu o bispo enviados do Papa, que lhe oferecia o Arcebispado de Tolosa, deixando em suas mãos a nomeação do sucessor. Quando Dom Illán soube disso, recordou-lhe a antiga promessa e pediu-lhe o título para seu filho. O arcebispo fez-lhe saber que o havia reservado para seu próprio tio, irmão de seu pai, mas que havia determinado favorecê-lo, e que partissem juntos para Tolosa. Dom Illán não teve outro remédio senão concordar.
          Foram os três para Tolosa, onde os receberam com honrarias e missas. Dois anos depois, recebeu o arcebispo enviados do Papa, que lhe oferecia o capelo de Cardeal, deixando em suas mãos a nomeação do sucessor. Quando Dom Illán soube disso, recordou-lhe a antiga promessa e pediu-lhe esse título para seu filho. O Cardeal fez-lhe saber que havia reservado o arcebispado para seu próprio tio, irmão de sua mãe, mas que havia determinado favorecê-lo, e que partissem juntos para Roma. Dom Illán não teve outro remédio senão concordar. Foram para Roma os três, onde os receberam com honrarias, missas e procissões.
          Quatro anos depois, morria o Papa e nosso Cardeal foi eleito para o papado por todos os demais. Quando Dom Illán soube disso, beijou os pés de Sua Santidade, recordou-lhe a antiga promessa e pediu-lhe o cardinalato para seu filho. O Papa ameaçou-lhe com a prisão, dizendo-lhe que bem sabia que ele não era mais do que um bruxo e que em Toledo tinha sido professor de artes mágicas. Então o mísero Dom Illán disse que voltaria à Espanha e lhe pediu alguma coisa para comer no caminho. O Papa não o atendeu. Foi quando Dom Illán (cujo rosto havia remoçado de modo estranho) disse com uma voz sem tremor:
          ─ Pois terei que comer sozinho as perdizes que encomendei para esta noite.
          A criada apresentou-se a Dom Illán e este deu ordem para que as assasse. A essas palavras, o Papa se encontrou na cela subterrânea em Toledo, apenas deão de Santiago, e tão envergonhado de sua ingratidão que nem atinava como desculpar-se. Dom Illán disse que bastava essa prova, negou-lhe sua parte nas perdizes e o acompanhou até a rua, onde lhe desejou feliz viagem e se despediu com grande cortesia.

(Do Livro de Patrônio do infante Dom Juan Manuel, que o derivou de um livro árabe: As Quarenta Manhãs e As Quarenta Noites.)

Jorge Luis Borges, in História Universal da Infâmia (1935).

[Obs.: Deão ─ título de dignidade eclesiástica, logo abaixo de bispo ou arcebispo, que dirigia a vida cotidiana dos clérigos.]

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