segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

História dos dois que sonharam - Jorge Luis Borges

        O historiador arábico El Ixaqui narra este acontecimento:
        “Contam os homens dignos de fé (porém só Alá é onisciente e poderoso e misericordioso e não dorme) que houve no Cairo um homem possuidor de riquezas, porém tão magnânimo e liberal que as perdeu todas, menos a casa de seu pai, e que se viu forçado a trabalhar para ganhar o pão. Trabalhou tanto que o sono o rendeu certa noite debaixo de uma figueira de seu jardim, e viu no sonho um homem encharcado que tirou uma moeda de ouro da boca e disse: ‘Tua fortuna está na Pérsia, em Isfarrã; vai buscá-la’. De madrugada, acordou, empreendeu a longa viagem e enfrentou os perigos dos desertos, das naus, dos piratas, dos idólatras, dos rios, das feras e dos homens. Chegou por fim a Isfarrã, mas no recinto dessa cidade a noite o surpreendeu, e ele parou para dormir no pátio de uma mesquita. Havia, junto à mesquita, uma casa, e por decreto de Deus Todo-Poderoso, uma quadrilha de ladrões atravessou a mesquita e se meteu na casa, e as pessoas que dormiam acordaram com o barulho dos ladrões e pediram socorro. Os vizinhos também gritaram, até que o capitão dos vigias daquele distrito acudiu com seus homens, e os bandidos fugiram pelo terraço. O capitão fez revistar a mesquita, e nela deram com o homem do Cairo e lhe infringiram tantos e tais açoites com varas de bambu que ele esteve perto da morte. No segundo dia, recobrou os sentidos no cárcere. O capitão mandou buscá-lo e disse: ‘Quem és, e qual a tua pátria?’ O outro declarou: ‘Sou da cidade famosa do Cairo e meu nome é Mohamed El Magrebi’. O capitão perguntou: ‘O que te trouxe à Pérsia?’ O outro optou pela verdade e lhe disse: ‘Um homem ordenou-me, em sonho, que viesse a Isfarrã, porque aí estava minha fortuna. Já estou em Isfarrã e vejo que essa fortuna prometida devem ser os açoites que tão generosamente me deste’.
        “Ante semelhantes palavras, o capitão riu até mostrar os dentes do siso e acabou por lhe dizer: ‘Homem desatinado e crédulo, três vezes sonhei eu com uma casa na cidade do Cairo, em cujo fundo há um jardim, e no jardim um relógio de sol e depois do relógio de sol, uma figueira, e após a figueira uma fonte, e sob a fonte um tesouro. Não dei o menor crédito a essa mentira. Tu, no entanto, produto de mula com qualquer demônio, tens errado de cidade em cidade, na fé única de teu sonho. Que eu não volte a te ver em Isfarrã. Toma estas moedas e vai-te’.
        “O homem pegou-as e regressou à pátria. Debaixo da fonte de seu jardim (que era a do sonho do capitão) desenterrou o tesouro. Assim Deus lhe deu bênçãos e o recompensou e o exaltou. Deus é o Generoso, o Oculto.”

     (Do “Livro das Mil e Uma Noites”, noite 351)


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