terça-feira, 2 de dezembro de 2008

Hora do apito - Sérgio de Almeida

Sérgio de Almeida

Quinze pras onze. Muito tempo ainda pela frente. Que bom que hoje tem lua. Gosto quando a percebo assim, de surpresa. É como se eu tivesse esquecido que ela existia. De repente olho e lá está ela. O grande disco alaranjado. É bom ficar parado, olhando. Mas agora não dá. Mais lindo é o luar do interior, onde não tem luzes como aqui. Aí só ela toma conta de tudo... Vou contar os passos de um giro completo. Um, dois, três... vinte e cinco... Chega, deixa pra lá. Parece coisa de criança, ficar contando. E ter que ficar apitando essa droga. Hora do apito. Eu podia apitar a cada duzentos, ou trezentos passos. Mas seria demais, imagina! E ficar contando como um relógio, que bobagem. Melhor é apitar uma ou duas vezes em cada ronda. Vamos ver. E a mãe que achava que eu ia me dar muito bem! Mas me meti a malandro cedo, fiquei uns anos sem estudar. Essas merdas que a gente faz. Agora estou aqui, vigia noturno de rua. Todo mundo dormindo ou caindo na noite e eu... Paciência. Tem gente fazendo faxina, limpando banheiro... Procura, procura e não acha nada melhor. Dizem que o pior é não ser visto. Ninguém olha pra cara de quem faz limpeza. Como se a pessoa não existisse. Aqui pelo menos não tenho que encarar quase ninguém. Sempre que posso evito cruzar com as pessoas. Trabalho na moita. Como se fosse. Nessa casa tem um carrão na garagem. E espaço pra mais dois. Naquela noite quando saíram não consegui ver qual era a marca. Daqui do portão não dá pra ver. Como é que eu conhecia todos os carros quando era pequeno? Claro, tinha meia dúzia de modelos. Hoje tem carro de tudo que é tipo. Pra quem pode comprar, deve até ser difícil de escolher... Ah, seria o tipo de dificuldade que eu queria ter. Vou caminhar até aquela árvore e voltar de lá. O cachorro chato está quieto hoje. Deve ter se acostumado com o meu cheiro. Esses bichos têm um faro incrível. Todo mundo sabe. Cachorrada danada! Eu não quis aquele um de presente. A mulher insistiu. Gostosa ela, coroa, mas gostosa. Cobrei cinqüenta pelo conserto. Cobrei bem, ajudou na prestação das roupas. Ela acreditou que eu já tinha cachorro, a tola. Não quero ter, por enquanto. Se tratar direito, dá muita despesa. Já faz quase um mês que comecei. Nem parece tanto. Trocando o dia pela noite. O bom é contar com salário fixo. Logo vou receber o primeiro. É miséria, mas tenho que encarar. Quero guardar pro ano que vem. Se não conseguir a bolsa integral pra faculdade. Quero fazer. Vou fazer, ah vou. Quero tirar o atrasado. Ainda posso me dar bem. Nada está perdido pra sempre, como diz a mãe. Sempre me dando força. Que bom que o Roberto me indicou. Gente boa ele. Trabalha lá no supletivo e nessa firma também. Não sei como agüenta. Se eu casar um dia, vou ter que fazer como ele. Ou achar uma grã-fina. Sonha, Joãozinho! Não são pro meu bico. Aquela coroa do cachorrinho eu até encarava. Tem coroa que paga pra fazer programa. Serviço nojento, pra vagabundo. Não quero isso pra mim. Hora do apito. E de voltar! Passei pela árvore e nem percebi. É bom ficar pensando. Quero ver onde a lua vai estar quando for hora de ir pra casa. Acho que quando amanhecer ela vai ficar quase apagada no céu claro. A luz do sol suplanta a luz da lua. Suplanta...? Só pra mim mesmo! Tem palavra que a gente nem sabe que tem na cabeça. Morando num cantinho escondido. Uma hora aparece, se a gente vê alguma coisa diferente. Ou a mesma coisa de um jeito diferente, sei lá. A luz do sol ofusca a luz da lua... Claro, a luz da lua não é dela. É a luz do sol batendo nela. Daqui da sombra dá pra ver melhor. Essa é a mesma lua que foi vista pelos faraós, por Jesus, Cabral e o escambau. Parece incrível. Na primeira vez que vi o mar, pensei a mesma coisa. O mar é sempre o mesmo. Passa todo o mundo, passam todos os navios de todas as épocas, mas ele fica. Junto com a lua lá em cima. A Marisa diz que tenho um lado poético... Sábado vamos sair, não vejo a hora. Sinto saudades. Poeta, eu? Ah, ah. Andando a noite toda nessa monotonia... Quem sabe viro poeta mesmo, ou doido. Quase meia-noite. Não devia olhar muito pro relógio. O tempo é como criança. Quanto mais atenção se dá a ele, mais ele quer se mostrar. Boa essa comparação do Érico no Arquipélago. Pela fama, esperava mais do livro. Não lembro se a frase era bem assim. Não importa... Essa idéia paga o tempo que levei pra ler. Uma ronda a cada vinte minutos. Dá três por hora. Três vezes seis, dezoito. Dezoito rondas ainda. Haja perna! Naquela sombra vou sentar nem que seja um minuto. Fico escondido das luzes. E dou mais uma espiada na lua. O supervisor não vai aparecer justo agora. Tomara que nunca venham roubar por aqui. Até agora não tive complicação. Quase nenhum movimento, nem dos moradores. Que continue assim. Hora do apito. Caiam fora, ladrões! Estou alerta por aqui. Mas depois quero me meter na cama e dormir feito criança. Ainda não me acostumei com esse horário maluco. Ainda bem que não é toda noite. Se fosse...
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Publicado em:
Histórias de trabalho 2007. Prefeitura Municipal de Porto Alegre. Porto Alegre, Editora da Cidade, 2008.

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