quarta-feira, 25 de maio de 2011

A menina de lá - João Guimarães Rosa

        Sua casa ficava para trás da Serra do Mim, quase no meio de um brejo de água limpa, lugar chamado o Temor-de-Deus. O Pai, pequeno sitiante, lidava com vacas e arroz; a Mãe, urucuiana, nunca tirava o terço da mão, mesmo quando matando galinhas ou passando descompostura em alguém. E ela, menininha, por nome Maria, Nhinhinha dita, nascera já muito para miúda, cabeçudota e com olhos enormes.

        Não que parecesse olhar ou enxergar de propósito. Parava quieta, não queria bruxas de pano, brinquedo nenhum, sempre sentadinha onde se achasse, pouco se mexia. - “Ninguém entende muita coisa que ela fala...” - dizia o Pai, com certo espanto. Menos pela estranhez das palavras, pois só em raro ela perguntava, por exemplo: -Ele xurugou?- e, vai ver, quem e o que, jamais se saberia. Mais, pelo esquisito do juízo ou enfeitado do sentido. Com riso imprevisto: -Tatu não vê a lua...” - ela falasse. Ou referia estórias, absurdas, vagas, tudo muito curto: da abelha que se voou para uma nuvem; de uma porção de meninas e meninos sentados a uma mesa de doces, comprida, comprida, por tempo que nem se acabava; ou da precisão de se fazer lista das coisas todas que no dia por dia a gente vem perdendo. Só a pura vida.

        Em geral, porém, Nhinhinha, com seus nem quatro anos, não incomodava ninguém, e não se fazia notada, a não ser pela perfeita calma, imobilidade e silêncios. Nem parecia gostar ou desgostar especialmente de coisa ou pessoa nenhuma. Botavam para ela a comida, ela continuava sentada, o prato de folha no colo, comia logo a carne ou o ovo, os torresmos, o do que fosse mais gostoso e atraente, e ia consumindo depois o resto, feijão, angu, ou arroz, abóbora, com artística lentidão. De vê-la tão perpétua e imperturbada, a gente se assustava de repente. - “Nhinhinha, que é que você está fazendo?” - perguntava-se. E ela respondia, alongada, sorrida, moduladamente: -Eu... to-u... fa-a-zendo”. Fazia vácuos. Seria mesmo seu tanto tolinha?

        Nada a intimidava. Ouvia o Pai querendo que a Mãe coasse um café forte, e comentava, se sorrindo: -Menino pidão... Menino pidão...” Costumava também dirigir-se à Mãe desse jeito: -Menina grande... Menina grande...”Com isso Pai e Mãe davam de zangar-se. Em vão. Nhinhinha murmurava só: -Deixa... Deixa...” - suasibilíssima, inábil como um flor. O mesmo dizia quando vinham chamá-la para qualquer novidade, dessas de entusiasmar adultos e crianças. Não se importava com os acontecimentos. Tranqüila, mas viçosa em saúde. Ninguém tinha real poder sobre ela, não se sabiam suas preferências. Como puni-la? E, bater-lhe, não ousassem; nem havia motivo. Mas, o respeito que tinha por Mãe e Pai, parecia mais uma engraçada espécie de tolerância. E Nhinhinha gostava de mim.

        Conversávamos, agora. Ela apreciava o casacão da noite. -Cheiinhas!- olhava as estrelas, deléveis, sobre-humanas. Chamava-as de “estrelinhas pia-pia”. Repetia: -Tudo nascendo!- essa sua exclamação dileta, em muitas ocasiões, com o deferir de um sorriso. E o ar. Dizia que o ar estava com cheiro de lembrança. -A gente não vê quando o vento se acaba...” Estava no quintal, vestidinha de amarelo. O que falava, às vezes era comum, a gente é que ouvia exagerado: -Alturas de urubuir...” Não, dissera só: - “... altura de urubu não ir.” O dedinho chegava quase no céu. Lembrou-se de: -Jabuticaba de vem-me-ver...” Suspirava, depois: -Eu quero ir para lá.” - Aonde? -Não sei.” Aí, observou: -O passarinho desapareceu de cantar...” De fato, o passarinho tinha estado cantando, e, no escorregar do tempo, eu pensava que não tivesse ouvindo; agora, ele se interrompera. Eu disse: - “A avezinha.” De por diante, Nhinhinha passou a chamar o sabiá de “Senhora Vizinha...” E tinha respostas mais longas: -Eeu? Tou fazendo saudade.” Outra hora, falava-se de parentes já mortos, ela riu: -Vou visitar eles...” Ralhei, dei conselhos, disse que ela estava com a lua. Olhou-me, zombaz, seus olhos muito perspectivos: -Ele te xurugou?” Nunca mais vi Nhinhinha.

        Sei, porém, que foi por aí que ela começou a fazer milagres.

        Nem Mãe nem Pai acharam logo a maravilha, repentina. Mas Tiantônia. Parece que foi de manhã. Nhinhinha, só, sentada, olhando o nada diante das pessoas: -Eu queria o sapo vir aqui.” Se bem a ouviram, pensaram fosse um patranhar, o de seus disparates, de sempre. Tiantônia, por vezo, acenou-lhe com o dedo. Mas, aí, reto, aos pulinhos, o ser entrava na sala, para aos pés de Nhinhinha - e não o sapo de papo, mas bela rã brejeira, vinda do verduroso, a rã verdíssima. Visita dessas jamais acontecera. E ela riu: -Está trabalhando um feitiço...” Os outros se pasmaram; silenciaram demais.

        Dias depois, com o mesmo sossego: -Eu queria uma pamonhinha de goiabada...” - sussurrou; e, nem bem meia hora, chegou uma dona, de longe, que trazia os pãezinhos da goiabada enrolada na palha. Aquilo, quem entendia? Nem os outros prodígios, que vieram se seguindo. O que ela queria, que falava, súbito acontecia. Só que queria muito pouco, e sempre as coisas levianas e descuidosas, o que não põe nem quita. Assim, quando a Mãe adoeceu de dores, que eram de nenhum remédio, não houve fazer com que Nhinhinha lhe falasse a cura. Sorria apenas, segredando seu -Deixa... Deixa...” - não a podiam despersuadir. Mas veio, vagarosa, abraçou a Mãe e a beijou, quentinha. A mãe, que a olhava com estarrecida fé, sarou-se então, num minuto. Souberam que ela tinha também outros modos.

        Decidiram de guardar segredo. Não viessem ali os curiosos, gente maldosa e interesseira, com escândalos. Ou os padres, o bispo, quisessem tomar conta da menina, levá-la para sério convento. Ninguém, nem os parentes de mais perto, devia saber. Também, o Pai, Tiantônia e a Mãe, nem queriam versar conversas, sentiam um medo extraordinário da coisa. Achavam ilusão.

        O que ao Pai, aos poucos, pegava a aborrecer, era que de tudo não se tirasse o sensato proveito. Veio a seca, maior, até o brejo ameaçava de se estorricar. Experimentaram pedir a Nhinhinha: que quisesse a chuva. -Mas, não pode, ué...” - ela sacudiu a cabecinha. Instaram-na: que, se não, se acabava tudo, o leite, o arroz, a carne, os doces, frutas, o melado. -Deixa... Deixa...” - se sorria, repousada, chegou a fechar os olhos, ao insistirem, no súbito adormecer das andorinhas.

        Daí a duas manhãs, quis: queria o arco-íris. Choveu. E logo aparecia o arco-da-velha, sobressaído em verde e o vermelho - que era mais um vivo cor-de-rosa. Nhinhinha se alegrou, fora do sério, à tarde do dia, com a refrescação. Fez o que nunca se lhe vira, pular e correr por casa e quintal. - “Adivinhou passarinho verde?” - Pai e Mãe se perguntavam. Esses, os passarinhos, cantavam, deputados de um reino. Mas houve que, a certo momento, Tiantônia repreendesse a menina, muito brava, muito forte, sem usos, até a Mãe e o Pai não entenderam aquilo, não gostaram. E Nhinhinha, branda, tornou a ficar sentadinha, inalterada que nem se sonhasse, ainda mais imóvel, com seu passarinho-verde pensamento. Pai e Mãe cochichavam, contentes: que, quando ela crescesse e tomasse juízo, ia poder ajudar muito a eles, conforme à Providência decerto prazia que fosse.

        E, vai, Nhinhinha adoeceu e morreu. Diz-se que da má água desses ares. Todos os vivos atos se passam longe demais.

        Desabado aquele feito, houve muitas diversas dores, de todos, dos de casa: um de-repente enorme. A Mãe, o Pai e Tiantônia davam conta de que era a mesma coisa que se cada um deles tivesse morrido por metade. E mais para repassar o coração, de se ver quando a Mãe desfiava o terço, mas em vez das ave-marias podendo só gemer aquilo de -Menina grande... Menina grande...” - com toda ferocidade. E o Pai alisava com as mãos o tamboretinho em que Nhinhinha se sentava tanto, e em que ele mesmo se sentar não podia, que com o peso de seu corpo de homem o tamboretinho se quebrava.

        Agora, precisavam de mandar recado, ao arraial, para fazerem o caixão e aprontarem o enterro, com acompanhamento de virgens e anjos. Aí, Tiantônia tomou coragem, carecia de contar: que, naquele dia, do arco-íris da chuva, do passarinho, Nhinhinha tinha falado despropositado desatino, por isso com ela ralhara. O que fora: que queria um caixãozinho cor-de-rosa, com enfeites verdes brilhantes... A agouraria! Agora, era para se encomendar o caixãozinho assim, sua vontade?

        O Pai, em bruscas lágrimas, esbravejou: que não! Ah, que, se consentisse nisso, era como tomar culpa, estar ajudando ainda a Nhinhinha a morrer...

        A Mãe queria, ela começou a discutir com o Pai. Mas, no mais choro, se serenou - o sorriso tão bom, tão grande - suspensão num pensamento: que não era preciso encomendar, nem explicar, pois havia de sair bem assim, do jeito, cor-de-rosa com verdes funebrilhos, porque era, tinha de ser! - pelo milagre, o de sua filhinha em glória, Santa Nhinhinha.

***

João Guimarães Rosa, in Primeiras Estórias (1962).

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