Sérgio de Almeida
Na penumbra do quarto Fernando Pessoa geme. Não sabe se voltará para casa. Não sabe se terminará hoje. Deseja apenas o fim da dor, que é lancinante e sem trégua. Sente seu intestino em brasa. A morfina torna a dor suportável e assim consegue pensar. Tem sobre o peito um caderno. Na mão trêmula, um lápis.
Não queria estar ali, preferia ficar em casa. No dia anterior o trouxeram para o hospital, contra sua vontade. Estar doente é ficar à mercê dos outros, é perder a liberdade. É o fim das horas insípidas, que ele preenchia com palavras regadas a vinho ou aguardente, num escrever quase compulsivo. As horas agora não são insípidas, mas amargas, muito amargas.
Começa a reavivar memórias antigas. Está em alto mar, no convés de um navio. Avista Lisboa perdendo-se no horizonte, os Açores aproximando-se numa tarde nublada, a costa da África aparecendo e sumindo, aparecendo e sumindo. O balanço das ondas o faz sentir vertigem. Tudo azul claro em cima, tudo azul escuro e prateado embaixo, no mar infinito, o Mar português:
Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Relembra a infância no colégio em Durban, na África do Sul Inglesa, onde foi educado no idioma que também amou e que serviu para tantos poemas. Vê os outros estudantes brincando sem ele, rostos rosados, cheios de saúde. Sua estranheza de menino franzino e solitário, suas leituras, seus cadernos nunca ociosos. O precoce e depois incansável manejo das palavras. A falta de ressonância com os outros a persistir por toda a vida. A invenção de amigos imaginários que, mais tarde, transformou em poetas como ele, com biografias e obras distintas.
Com uma tal falta de gente coexistível, como há hoje, que pode um homem de sensibilidade fazer senão inventar os seus amigos, ou quando menos, os seus companheiros de espírito?
Percebe-se mais sozinho do que nunca. Deseja conversar, quer dizer algo, mas não aos parentes, médicos ou enfermeiras. Não seriam capazes de entender, esses exemplos da humanidade como mera espécie animal, cadáveres adiados que procriam... Julga-se severo e cruel, mas não se importa.
As dores persistem. Sente-se agoniado ao extremo. Uma imensa saudade do menino que foi – do menino fascinado com a literatura nas aulas de inglês – toma conta de si. Pede os óculos e escreve sua derradeira frase:
I know not what tomorrow will bring.
Ao terminá-la pressente que não haverá amanhã e desespera-se. Larga lápis e caderno. Clama pelos seus amigos inventados:
– Ricardo Reis, Álvaro de Campos, mestre Caeiro! Vão me deixar penar sozinho?
Fecha os olhos e ao reabri-los seu rosto se ilumina. Vê Ricardo Reis sentado a seu lado e consola-se com o olhar silencioso e compassivo do amigo. A seguir, ouve-o dizer que ficará com ele até o fim. Que o fim é quando não mais somos. Então, quando deixarmos de ser, não saberemos. Sendo assim, por que temer?
– Ah, companheiro, não é o fim que me angustia, mas o chegar ao fim sem saber quem sou, quem fui, quem poderia ter sido. Acho que minha vida foi em vão, um erro, um equívoco.
Retoma o fôlego por uns instantes e continua:
– Eu agi sempre para dentro. Eu nunca toquei na vida. Nunca pensei em gozar minha vida, só quis torná-la grande. Viver não era necessário, o necessário era criar. Esse o lema que me consumiu. Mas não sei se minha obra permanecerá.
Ouve a voz suave de Ricardo Reis tentando confortá-lo:
– Meu bom amigo, você deixou suas pegadas, você foi único, você criou. Como recomendei em meus poemas, nada exagerou ou excluiu, foi todo em cada coisa. Seguiu seu destino, regou suas plantas, amou suas rosas. O resto é a sombra de árvores alheias. O baú está repleto com seus escritos. Levarão anos para publicar tudo. E você mesmo escreveu que tudo vale a pena se a alma...
– Basta, basta! Eu merecia coisa melhor como último pensamento! Também te fiz escrever: Nada fica de nada. Somos contos contando contos, nada.
A agonia chega aos instantes finais. Seu pensamento se confunde e naufraga. Todo seu corpo arde e ele se retorce e estremece na cama. Continua a ouvir uma voz amiga e indefinida que o conforta, mas não entende as palavras. Sente uma mão segurando a sua e outra levemente pousada sobre sua cabeça.
Assim vai perdendo a consciência. Sente vertigem como sentia em alto mar, no vai-e-vem das ondas, nas tempestades. A vertigem desaparece. Não mais luta contra a dor, contra o passado, contra si mesmo. Relaxa. Sente-se leve e flutua acima da cidade. Lisboa desvanece abaixo de si. Deixa de sentir o corpo.
Tudo começa a tornar-se escuro, depois claro, depois branco resplandecente, depois cinza e enfim tudo se apaga. Mas não há escuridão. Não há luz. Não há dor. Não há medo. Não há pesar.
Não há mais nada.
* * *
Publicado em:
RITER, Caio (org.). A semente e o verbo. Antologia 2006/2007. Sintrajufe, Porto Alegre-RS, 2007.
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