quarta-feira, 11 de março de 2009

Dos veios escatológicos - Manoel de Barros



Na Vila não se praticavam latrinas. Donas desabavam em urinóis. E os homens no mato. Os porcos seguiam os homens pelos trilheiros que davam no mato. As lides de cagar facilitavam encontros de amor. A ponto de um viajante verter no caderno de notas: “Aqui as pessoas se filham no mato com vera competência, qual os porcos nas vielas, de forma que se pare espraiado e nascem crianças papudas e idiotas de igrejas como cupim. Lugar onde se fode e se caga no mato há de ser este!!!” (Desse jeito – !!! – com três pontos de admiração.) Na hora do homem fazer força, quando a vaidade se acaba, justo aí chegavam os porcos famintos e, lhes entrando nos homens por debaixo, saíam com eles nas costas, quando lhes não prostravam na própria obra. De forma que sujos de suas obras, como se lê no Eclesiastes. Montados ainda no porco, alguns homens entravam na Vila, na maior sengraceira, com cara de cachorro que peidou na igreja.

A fim de evitar tais vexames, depois de muito craniar, engenhoso cidadão e exemplar paroquiano inventou o Pau-Pra-Porco. Instrumento esse de madeira medindo uma bengala de lorde, chanfrada a facão, com que os homens na hora de descomer bordoavam os porcos que lhes tentassem derrubar na própria plastra. O engenhoso paroquiano abastou-se em déreis, e se tornou o rei do Pau-Pra-Porco. Com venda do mesmo nome no beco principal. Desse tempo pra cá ninguém mais apareceu na Vila montado no porco.

Na beira do Tanque da Praça da Matriz, o poeta Neco Caolho versava pras moças vergonhosas – “No dia em que me achei cagando ao vento...” bocagemente, ao de cócoras. Dava um prazer fróidico no sacristão em desmoçar as beatas dentro do Tanque, entre rãs prenhas. A égua velhaca da Praça só entregava pra ele. Era de ver a mansura da égua com o sacristão. Toda essa universal cristandade se transmitia pelo sangue.

Em 1926, o antropólogo Claude Lévy-Strauss, de viagem por ali, notou a pobreza dos móveis que encontrou no interior das residências. Dois ou três mochos na sala, arames de estender roupas nos quartos servindo de armário – e redes. Redes armadas por todos os cantos. Redes muitas de varandas artísticas, servindo de vasilhas de dormir e de sestear. No hábito de sestear no mormaço do meio-dia se amulheravam e se afilhavam também. A blandícia do mormaço engendrava crianças. Se usavam demais os dedos nos barrotes a fim de impulsionar as redes. Davam-se cópulas balançadas e refrescantes. Assim, os barrotes dos quartos sempre estavam furados. E por eles podiam-se ver as primas nos urinóis. Coisa imanente e afrodisíaca, que muito deve ter influído nas tendências voyeurísticas daquele povo. Bem como o hábito do guaraná que é bebida afrodisíaca, porém no seu ralar e não na substância da bebida. Eis que no ralar a mulher meneia os quadris. E o desejo dos homens provém do mover os quadris. Coisa que eu não descreio.

Pois foi esse o povo ladino, sensual e andejo que um dia atravessando o rio Taquari encheu de filhos e de gado o que se chama hoje, no Pantanal, a zona da Nhecolândia.

Extraído de:
BARROS, Manoel de. Livro de pré-coisas. Ed. Record, Rio de Janeiro, 2003.

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Postei esse texto pra compensar a sisudez de alguns dos demais! A disposição para o humor é um dom especial. E lembrei da expressão “sentar no trono” que, dizem, vem do costume que havia na igreja quando da eleição de um novo papa. Segundo consta, o eleito, cheio de pompas e glórias, sentava-se em uma cadeira com um buraco no centro, à imitação de um vaso sanitário, pra que o dito cujo não se esquecesse que continuava sendo uma criatura humana, como nós outros! Parece que o memorável gesto foi abolido por João XXIII. Que pena.

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