quarta-feira, 16 de dezembro de 2009
Cobaias de Deus - Cazuza e Angela Rô Rô
Vá a um laboratório ou um labirinto
Seja atropelado por esse trem da morte
Vá ver as cobaias de Deus
Andando na rua pedindo perdão
Vá a uma igreja qualquer
Pois lá se desfazem em sermão
Me sinto uma cobaia, um rato enorme
Nas mãos de Deus mulher
De um Deus de saia
Cagando e andando
Vou ver o ET
Ouvir um cantor de blues
Em outra encarnação
Nós, as cobaias de Deus
Nós somos cobaias de Deus
Nós somos as cobaias de Deus
Me tire dessa jaula, irmão, não sou macaco
Desse hospital maquiavélico
Meu pai, minha mãe, eu estou com medo
Porque eles vão deixar a sorte me levar
Você vai me ajudar, traga a garrafa
Estou desmilinguido, cara de boi lavado
Traga uma corda, irmão (irmão, acorda!)
Nós, as cobaias, vivemos muito sós
Por isso, Deus tem pena, e nos põe na cadeia
E nos faz cantar, dentro de uma cadeia
E nos põe numa clínica, e nos faz voar
Nós, as cobaias de Deus
Nós somos cobaias de Deus
Nós somos as cobaias de Deus
Nós…
sábado, 28 de novembro de 2009
Poema - Cazuza e Frejat
Eu acordei com medo e procurei no escuro
Alguém com seu carinho e lembrei de um tempo
Porque o passado me traz uma lembrança
Do tempo que eu era criança
E o medo era motivo de choro
Desculpa pra um abraço ou um consolo
Hoje eu acordei com medo mas não chorei
Nem reclamei abrigo
Do escuro eu via um infinito sem presente
Passado ou futuro
Senti um abraço forte, já não era medo
Era uma coisa sua que ficou em mim, que não tem fim
De repente a gente vê que perdeu
Ou está perdendo alguma coisa
Morna e ingênua
Que vai ficando no caminho
Que é escuro e frio mas também bonito
Porque é iluminado
Pela beleza do que aconteceu
Há minutos atrás
Sobre a arte - Arthur Schopenhauer
(Arthur Schopenhauer)
sábado, 21 de novembro de 2009
Os dois reis e os dois labirintos – Jorge Luis Borges
Em seguida, desatou-lhe as amarras e o abandonou no meio do deserto, onde morreu de fome e de sede. A glória esteja com Aquele que não morre.
Jorge Luis Borges, in O Aleph (1949).
Mais Borges aqui:
O bruxo preterido
quarta-feira, 30 de setembro de 2009
Terra - Caetano Veloso
A 'Blue Marble 2012' é, segundo a Nasa, a 'mais incrível imagem em alta definição da Terra' (Foto: NASA/NOAA/GSFC/Suomi NPP/VIIRS/Norman Kuring) - Fonte: G1
Quando eu me encontrava preso
Na cela de uma cadeia
Foi que vi pela primeira vez
As tais fotografias
Em que apareces inteira
Porém lá não estavas nua
E sim coberta de nuvens...
Terra! Terra!
Por mais distante
O errante navegante
Quem jamais te esqueceria?...
Ninguém supõe a morena
Dentro da estrela azulada
Na vertigem do cinema
Mando um abraço pra ti
Pequenina como se eu fosse
O saudoso poeta
E fosses a Paraíba...
Terra! Terra!
Por mais distante
O errante navegante
Quem jamais te esqueceria?...
Eu estou apaixonado
Por uma menina terra
Signo de elemneto terra
Do mar se diz terra à vista
Terra para o pé firmeza
Terra para a mão carícia
Outros astros lhe são guia...
Terra! Terra!
Por mais distante
O errante navegante
Quem jamais te esqueceria?...
Eu sou um leão de fogo
Sem ti me consumiria
A mim mesmo eternamente
E de nada valeria
Acontecer de eu ser gente
E gente é outra alegria
Diferente das estrelas...
Terra! Terra!
Por mais distante
O errante navegante
Quem jamais te esqueceria?...
De onde nem tempo, nem espaço
Que a força mãe dê coragem
Pra gente te dar carinho
Durante toda a viagem
Que realizas no nada
Através do qual carregas
O nome da tua carne...
Terra! Terra!
Por mais distante
O errante navegante
Quem jamais te esqueceria?
Terra! Terra!
Por mais distante
O errante navegante
Quem jamais te esqueceria?
Terra! Terra!
Por mais distante
O errante navegante
Quem jamais te esqueceria?...
Na sacada dos sobrados
da velha são Salvador
Há lembranças de donzelas
Do tempo do Imperador
Tudo, tudo na Bahia
Faz a gente querer bem
A Bahia tem um jeito...
Terra! Terra!
Por mais distante
O errante navegante
Quem jamais te esqueceria?
Terra!
segunda-feira, 21 de setembro de 2009
O quereres - Caetano Veloso
Onde queres revólver, sou coqueiro
E onde queres dinheiro, sou paixão
Onde queres descanso, sou desejo
E onde sou só desejo, queres não
E onde não queres nada, nada falta
E onde voas bem alta, eu sou o chão
E onde pisas o chão, minha alma salta
E ganha liberdade na amplidão
Onde queres família, sou maluco
E onde queres romântico, burguês
Onde queres Leblon, sou Pernambuco
E onde queres eunuco, garanhão
Onde queres o sim e o não, talvez
E onde vês, eu não vislumbro razão
Onde queres o lobo, eu sou o irmão
E onde queres cowboy, eu sou chinês
Ah! bruta flor do querer
Ah! bruta flor, bruta flor
Onde queres o ato, eu sou o espírito
E onde queres ternura, eu sou tesão
Onde queres o livre, decassílabo
E onde buscas o anjo, sou mulher
Onde queres prazer, sou o que dói
E onde queres tortura, mansidão
Onde queres um lar, revolução
E onde queres bandido, sou herói
Eu queria querer-te amar o amor
Construir-nos dulcíssima prisão
Encontrar a mais justa adequação
Tudo métrica e rima e nunca dor
Mas a vida é real e de viés
E vê só que cilada o amor me armou
Eu te quero (e não queres) como sou
Não te quero (e não queres) como és
Ah! bruta flor do querer
Ah! bruta flor, bruta flor
Onde queres comício, flipper-vídeo
E onde queres romance, rock’n roll
Onde queres a lua, eu sou o sol
E onde a pura natura, o inseticídio
Onde queres mistério, eu sou a luz
E onde queres um canto, o mundo inteiro
Onde queres quaresma, fevereiro
E onde queres coqueiro, eu sou obus
O quereres e o estares sempre a fim
Do que em mim é de mim tão desigual
Faz-me querer-te bem, querer-te mal
Bem a ti, mal ao quereres assim
Infinitivamente pessoal
E eu querendo querer-te sem ter fim
E, querendo-te, aprender o total
Do querer que há e do que não há em mim
terça-feira, 15 de setembro de 2009
Um trem para as estrelas - Gilberto Gil e Cazuza
Vejo o Cristo, da janela
O sol apagou sua luz
E o povo lá embaixo espera
Nas filas dos pontos de ônibus
Procurando aonde ir
São todos seus cicerones
Correm pra não desistir
Dos seus salários de fome
É a esperança que eles têm
Nesse filme como extras
Todos querem se dar bem
Num trem pras estrelas
Depois dos navios negreiros
Outras correntezas
Meu nego
Num trem pras estrelas
Depois dos navios negreiros
Outras correntezas
Meu nego
Estranho, teu Cristo, Rio
Que olha tão longe, além
Tem os braços sempre abertos
Mas sem proteger ninguém
Eu vou forrar as paredes
Do meu quarto de miséria
Com manchetes de jornal
Pra ver que não é nada sério
Eu vou dar o meu desprezo
Pra você que me ensinou
Que a tristeza é uma maneira
Da gente se salvar depois
Num trem pras estrelas
Depois dos navios negreiros
Outras correntezas
Meu nego
Num trem pras estrelas
Depois dos navios negreiros
Outras correntezas
Meu nego
segunda-feira, 14 de setembro de 2009
Se em certa altura - Fernando Pessoa
Se em certa altura
Tivesse voltado para a esquerda em vez de para a direita;
Se em certo momento
Tivesse dito sim em vez de não, ou não em vez de sim;
Se em certa conversa
Tivesse dito as frases que só agora, no meio-sono, elaboro -
Se tudo isso tivesse sido assim,
Seria outro hoje, e talvez o universo inteiro
Seria insensivelmente levado a ser outro também.
Mas não virei para o lado irreparavelmente perdido,
Não virei nem pensei em virar, e só agora percebo;
Mas não disse não ou não disse sim, e só agora vejo o que não disse;
Mas as frases que faltou dizer nesse momento surgem-me todas,
Claras, inevitáveis, naturais,
A conversa fechada concludentemente,
A matéria toda resolvida...
Mas só agora o que nunca foi, nem será para trás, me dói.
O que falhei deveras não tem ‘sperança nenhuma
Em sistema metafísico nenhum.
Pode ser que para outro mundo eu possa levar o que sonhei,
Mas poderei eu levar para outro mundo o que me esqueci de sonhar?
Esses sim, os sonhos por haver, é que são o cadáver.
Enterro-o no meu coração para sempre, para todo o tempo, para
todos os universos,
Nesta noite em que não durmo, e o sossego me cerca
Como uma verdade de que não partilho,
E lá fora o luar, com a esperança que não tenho, é invisível p’ra mim.
Fernando Pessoa (11-5-1928)
quinta-feira, 10 de setembro de 2009
Ode ao homem singelo / Oda al hombre sencillo - Pablo Neruda
Vês tu que simples sou,
quién soy yo,
así, en voz alta,
me dirás quién eres
quiero saber quién eres,
cuánto ganas,
en qué taller trabajas,
en qué mina,
en qué farmacia,
tengo una obligación terrible
y es saberlo,
saberlo todo,
día y noche saber
cómo te llamas,
ése es mi oficio,
conocer una vida
no es bastante
ni conocer todas las vidas
es necesario,
verás,
hay que desentrañar,
rascar a fondo
y como en una tela
las líneas ocultaron,
con el color, la trama
del tejido,
yo borro los colores
y busco hasta encontrar
el tejido profundo,
así también encuentro
la unidad de los hombres,
y en el pan
busco
más allá de la forma:
me gusta el pan, lo muerdo,
y entonces
veo el trigo,
los trigales tempranos,
la verde forma de la primavera,
las raíces, el agua,
por eso
más allá del pan,
veo la tierra,
la unidad de la tierra,
el agua,
el hombre,
y así todo lo pruebo
buscándote
en todo,
ando, nado, navego,
hasta encontrarte,
y entonces te pregunto
cómo te llamas,
calle y número,
para que tú recibas
mis cartas,
para que yo te diga
quién soy y cuánto gano,
dónde vivo,
y cómo era mi padre.
Ves tú qué simple soy,
qué simple eres,
no se trata
de nada complicado,
yo trabajo contigo,
tú vives, vas y vienes
de un lado a otro,
es muy sencillo,
eres la vida,
eres tan transparente
como el agua,
y así soy yo,
mi obligación es ésa:
ser transparente,
cada día
me educo,
cada día me peino
pensando como piensas,
y ando
como tú andas,
como, como tú comes,
tengo en mis brazos a mi amor
como a tu novia tú,
y entonces
cuando esto está probado,
cuando somos iguales
escribo,
escribo con tu vida y con la mía,
con tu amor y los míos,
con todos tus dolores
y entonces
ya somos diferentes
porque, mi mano en tu hombro,
como viejos amigos
te digo en las orejas:
no sufras,
ya llega el día,
ven,
ven conmigo,
ven
con todos
los que a ti se parecen,
los más sencillos,
ven,
no sufras,
ven conmigo,
porque aunque no lo sepas,
eso yo sí lo sé:
yo sé hacia dónde vamos,
y es ésta la palabra:
no sufras
porque ganaremos,
ganaremos nosotros,
los más sencillos,
ganaremos,
aunque tú no lo creas,
ganaremos.
(Muito me alegra que o texto mais visitado aqui é este poema, entre tantos. Lembro como me tocou profundamente da primeira vez que o li, e como o distribuía datilografado aos amigos próximos nos velhos tempos).
Outra ode de Neruda: Ode ao gato
domingo, 26 de julho de 2009
Paranóia - Raul Seixas
E de repente chega o amanhecer
Sinto a culpa que eu não sei de que
Pergunto o que que eu fiz?
Meu coração não diz e eu...
Eu sinto medo!
Eu sinto medo!
Se eu vejo um papel qualquer no chão
Tremo, corro e apanho pra esconder
Medo de ter sido uma anotação que eu fiz
Que não se possa ler
E eu gosto de escrever, mas...
Mas eu sinto medo!
Eu sinto medo!
Tinha tanto medo de sair da cama à noite pro banheiro
Medo de saber que não estava ali sozinho porque sempre...
Sempre... sempre... sempre... Eu estava com Deus!
Eu estava com Deus!
Eu estava com Deus!
Eu estava sempre com Deus!
Minha mãe me disse há tempo atrás
Onde você for Deus vai atrás
Deus vê sempre tudo que cê faz
Mas eu não via Deus
Achava assombração, mas...
Mas eu tinha medo!
Eu tinha medo!
Vacilava sempre a ficar nu lá no chuveiro, com vergonha
Com vergonha de saber que tinha alguém ali comigo
Vendo fazer tudo que se faz dentro dum banheiro
Vendo fazer tudo que se faz dentro dum banheiro
Para...nóia
Dedico esta canção:
Para Nóia!
Com amor e com medo (com amor e com medo)
Com amor e com medo (com amor e com medo)
Com amor e com medo (com amor e com medo)
Com amor e com medo (com amor e com medo)...
Com amor e com medo...
quarta-feira, 15 de julho de 2009
Mas vai chover - Clarice Lispector
Maria Angélica de Andrade tinha sessenta anos. E um amante, Alexandre, de dezenove anos.
O rapaz hesitava, visivelmente constrangido. Mas disse:
– Se for por pouco tempo, entro, porque tenho que trabalhar.
Entrou. Maria Angélica não sabia que já estava apaixonada. Deu-lhe uma grossa fatia de bolo e café com leite. Enquanto ele comia pouco à vontade, ela embevecida o olhava. Ele era a força, a juventude, o sexo há muito tempo abandonado. O rapaz acabou de comer e beber, e enxugou a boca com a manga da camisa. Maria Angélica não achou que fossem maus modos: ficou deliciada, achou-o natural, simples, encantador.
– Agora vou embora que meu patrão vai me deixar grilado se eu demorar.
Ela estava fascinada. Observou que ele tinha umas poucas espinhas no rosto. Mas isso não lhe alterava a beleza e a masculinidade: os hormônios lá ferviam. Aquele, sim, era um homem. Deu-lhe uma gorjeta enorme, desproporcional, que surpreendeu o rapaz. E disse com uma vozinha cantante e com trejeitos de mocinha romântica:
– Só deixo você sair se prometer que voltará! Hoje mesmo! Porque vou pedir uma vitaminazinha na farmácia...
Uma hora depois ele estava de volta com as vitaminas. Ela havia mudado de roupa, estava com um quimono de renda transparente. Via-se a marca de suas calcinhas. Mandou-o entrar. Disse-lhe que era viúva. Era o modo de lhe avisar que era livre. Mas o rapaz não entendia.
Convidou-o a percorrer o bem-decorado apartamento deixando-o embasbacado. Levou-o a seu quarto. Não sabia como fazer para que ele entendesse. Disse-lhe então:
– Minha senhora, disse o menino nervoso, por favor se controle! A senhora está passando bem?
– Não posso me controlar! Eu te amo! Venha para a cama comigo!
– Tá doida?!
– Não estou doida! Ou melhor: estou doida por você! Gritou-lhe enquanto tirava a coberta roxa da grande cama de casal.
E vendo que ele nunca entenderia, disse-lhe morta de vergonha:
– Venha para a cama comigo...
– Eu?!
– Eu lhe dou um presente grande! Eu lhe dou um carro!
Carro? Os olhos do rapaz faiscaram de cobiça. Um carro! Era tudo o que desejava na vida. Perguntou desconfiado:
– Um karmann-ghia?
– Sim, meu amor, o que você quiser!
O que se passou em seguida foi horrível. Não é necessário saber. Maria Angélica – oh, meu Deus, tenha piedade de mim, me perdoe por ter que escrever isto! – Maria Angélica dava gritinhos na hora do amor. E Alexandre tendo que suportar com nojo, com revolta. Transformou-se num rebelado para o resto da vida. Tinha a impressão de que nunca mais ia poder dormir com uma mulher. O que aconteceria mesmo: aos vinte e sete anos ficou impotente.
E tornaram-se amantes. Ele, por causa dos vizinhos, não morava com ela. Quis morar num hotel de luxo: tomava café na cama. E logo abandonou o emprego. Comprou camisas caríssimas. Foi a um dermatologista e as espinhas desapareceram.
Maria Angélica mal acreditava na sua sorte. Pouco se importava com as criadas que quase riam na sua cara.
Uma amiga sua advertiu-lhe:
– Maria Angélica, você não vê que o rapaz é um pilantra? Que está explorando você?
– Não admito que você chame Alex de pilantra! E ele me ama!
Um dia Alex teve uma ousadia. Disse-lhe:
– Vou passar uns dias fora do Rio com uma garota que conheci. Preciso de dinheiro.
Foram dias horríveis para Maria Angélica. Não saiu de casa, não tomou banho, mal se alimentou. Era por teimosia que ainda acreditava em Deus. Porque Deus a abandonara. Ela era obrigada a ser penosamente ela mesma.
Cinco dias depois ele voltou, todo pimpão, todo alegre. Trouxe-lhe de presente uma lata de goiabada-cascão. Ela foi comer e quebrou um dente. Teve que ir ao dentista para pôr um dente falso.
E a vida corria. As contas aumentavam. Alexandre exigente. Maria Angélica aflita. Quando fez sessenta e um anos de idade ele não apareceu. Ela ficou sozinha diante do bolo de aniversário.
Então – então aconteceu.
Alexandre lhe disse:
– Preciso de um milhão de cruzeiros.
– Um milhão? Espantou-se Maria Angélica.
– Sim!, respondeu irritado, um bilhão antigo!
– Mas... mas eu não tenho tanto dinheiro...
– Venda o apartamento, então, e venda o seu Mercedes, dispense o chofer.
– Mesmo assim não dava, meu amor, tenha piedade de mim!
– Sua velha desgraçada! sua porca, sua vagabunda! Sem um bilhão não me presto mais para as suas sem-vergonhices!
E, num ímpeto de ódio, saiu batendo a porta de casa.
Maria Angélica ficou ali de pé. Doía-lhe o corpo todo.
Depois foi devagar sentar-se no sofá da sala. Parecia uma ferida de guerra. Mas não havia Cruz Vermelha que a socorresse. Estava quieta, muda. Sem palavra nenhuma a dizer.
– Parece – pensou – parece que vai chover.
Clarice Lispector, in A via crucis do corpo. Rio de Janeiro, ed. Rocco, 1998.
Outro conto:
A procura de uma dignidade
quinta-feira, 9 de julho de 2009
A bruxa - Carlos Drummond de Andrade
De dois milhões de habitantes,
Estou sozinho no quarto,
Estou sozinho na América.
Estarei mesmo sozinho?
Ainda há pouco um ruído,
Anunciou vida ao meu lado.
Certo não é vida humana,
Mas é vida.
E sinto a bruxa,
Presa na zona da luz.
De dois milhões de habitantes!
E nem precisava tanto.
Precisava de um amigo
Desses calados, distantes,
Que lêem verso de Horácio
Mas secretamente influem
Na vida, no amor, na carne.
Estou só, não tenho amigo.
E a esta hora tardia,
Como procurar amigo?
E nem precisava tanto!
Precisava de mulher,
Que entrasse nesse minuto
Recebesse este carinho,
Salvasse do aniquilamento
Um minuto e um carinho loucos
Que tenho para oferecer.
Em dois milhões de habitantes,
Quantas mulheres prováveis
Interrogam-se no espelho
Medindo o tempo perdido,
Até que venha a manhã
Trazer leite, jornal e calma.
Porém a esta hora vazia,
Como descobrir mulher?
Esta cidade do Rio!
Tenho tanta palavra meiga,
Conheço vozes de bichos
Sei os beijos mais violentos.
Viajei, briguei, aprendi.
Estou cercado de olhos,
De mãos, afetos, procuras.
Mas se tento comunicar-me,
O que há é apenas a noite
E uma espantosa solidão.
Companheiros, escutai-me!
Esta presença agitada
Querendo romper a noite,
Não é simplesmente a bruxa.
É antes a confidência,
Exalando-se de um homem.
domingo, 5 de julho de 2009
O Tejo é mais belo - Fernando Pessoa
O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia,
Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia
Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia.
O Tejo tem grandes navios
E navega nele ainda,
Para aqueles que vêem em tudo o que lá não está,
A memória das naus.
O Tejo desce de Espanha
E o Tejo entra no mar em Portugal.
Toda a gente sabe isso.
Mas poucos sabem qual é o rio da minha aldeia
E para onde ele vai
E donde ele vem.
E por isso, porque pertence a menos gente,
É mais livre e maior o rio da minha aldeia.
Pelo Tejo vai-se para o Mundo.
Para além do Tejo há a América
E a fortuna daqueles que a encontram.
Ninguém nunca pensou no que há para além
Do rio da minha aldeia.
O rio da minha aldeia não faz pensar em nada.
Quem está ao pé dele está só ao pé dele.
(O guardador de rebanhos, XX)
segunda-feira, 8 de junho de 2009
Inferno, I, 32 - Jorge Luis Borges
sábado, 6 de junho de 2009
A nova pessoa que vem a mim - Walt Whitman
Ouça um conselho, para começar:
eu sou com certeza bem diferente
do que você imagina...
Você imagina encontrar em mim seu ideal?
Acha tão fácil assim eu me tornar seu amante?
Pensa que minha amizade
é fonte de satisfação sem impureza?
Julga que eu seja fiel e digno de confiança?
Além desta fachada, do meu jeito macio e tolerante,
você não vê mais nada?
Acha que vem avançando
em bases realmente firmes
na direção de um homem realmente heróico?
Pela cabeça nunca lhe passou, ó sonhador,
que tudo isso pode ser maya, ilusão?
(Tradução de Geir Campos)
"Are you the new person drawn toward me?
To begin with, take warning--
I am surely far different from what you suppose;
Do you suppose you will find in me your ideal?
Do you think it so easy to have me become your lover?
Do you think the friendship of me would be unalloy'd satisfaction?
Do you think I am trusty and faithful?
Do you see no further than this façade--
this smooth and tolerant manner of me?
Do you suppose yourself advancing
on real ground toward a real heroicman?
Have you no thought,
O dreamer,
that it may be all maya, illusion?"
sábado, 23 de maio de 2009
Cristo na cruz - Jorge Luis Borges
Cristo na cruz. Os pés tocam a terra.
quinta-feira, 21 de maio de 2009
O amor comeu... - João Cabral de Melo Neto
Falas do personagem Joaquim extraídas da poesia "Os Três Mal-Amados", do livro "João Cabral de Melo Neto - Obras Completas", Ed. Nova Aguilar S.A. Rio de Janeiro, 1994, pág. 59.
Verdade - Carlos Drummond de Andrade
A porta da verdade estava aberta,
mas só deixava passar
meia pessoa de cada vez.
Assim não era possível atingir toda a verdade,
porque a meia pessoa que entrava
só trazia o perfil de meia verdade.
E sua segunda metade
voltava igualmente com meio perfil.
E os meios perfis não coincidiam.
Arrebentaram a porta. Derrubaram a porta.
Chegaram ao lugar luminoso
onde a verdade esplendia seus fogos.
Era dividida em metades
diferentes uma da outra.
Chegou-se a discutir qual a metade mais bela.
Nenhuma das duas era totalmente bela.
E carecia optar. Cada um optou conforme
seu capricho, sua ilusão, sua miopia.
sábado, 9 de maio de 2009
Amigos - Vinicius de Moraes
sexta-feira, 1 de maio de 2009
À espera dos bárbaros - Konstantinos Kaváfis
Os senadores não legislam mais?
Que leis hão de fazer os senadores?
Os bárbaros que chegam as farão.
e de coroa solene se assentou
em seu trono, à porta magna da cidade?
O nosso imperador conta saudar
o chefe deles. Tem pronto para dar-lhe
um pergaminho no qual estão escritos
muitos nomes e títulos.
usam togas de púrpura, bordadas,
e pulseiras com grandes ametistas
e anéis com tais brilhantes e esmeraldas?
Por que hoje empunham bastões tão preciosos
de ouro e prata finamente cravejados?
tais coisas os deslumbram.
derramar o seu verbo como sempre?
e aborrecem arengas, eloqüências.
(Que seriedade nas fisionomias!)
Por que tão rápido as ruas se esvaziam
e todos voltam para casa preocupados?
e gente recém-chegada das fronteiras
diz que não há mais bárbaros.
Ah! eles eram uma solução.